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domingo, 20 de julho de 2014

A peregrinação pela saúde

A cada ano, 54 mil pessoas vêm à capital em busca de tratamento médico. Fluxo pressiona o sistema e representa 35% dos internamentos

na Gazeta do Povo


Ônibus e vans começam a chegar muito cedo, antes do raiar do dia. Vêm de todas as regiões do estado, em um movimento que faz lembrar uma romaria. Em pouco tempo, lotam a pequena rua no bairro Jardim Botânico, em Curitiba. Ali, fica uma das 14 casas de apoio regularizadas – com alvará – da capital, que acolhem pessoas vindas de outras regiões para cuidar da saúde. Sim, esses “peregrinos” não vêm à cidade para rezar, mas para terem acesso a tratamento médico.

Mais de 35% dos pacientes internados em Curitiba vêm de outros municípios. Algo em torno de 54 mil pessoas por ano. Por um lado, essa peregrinação revela as dificuldades enfrentadas por quem precisa rodar centenas de quilômetros para cuidar da saúde. Por outro, a migração exerce um peso sobre o sistema. Em 2012, o atendimento a pessoas de outros municípios, via Sistema Único de Saúde (SUS), custou mais de R$ 100 milhões, cobertos pelo Fundo Municipal de Saúde, com recursos do governo federal. O valor representa 41% do que a capital gasta com o serviço.

A romaria por tratamento não se dá à toa: Curitiba concentra a maior parte dos serviços especializados de saúde no estado. Quem vem, vem porque precisa. Os pacientes são encaminhados por médicos de hospitais e unidades de saúde das cidades de origem. Em geral, são casos de alta complexidade. Por causa disso, o custo médio do internamento de quem vem de outros municípios é maior do que o dos pacientes locais.

Histórias

Quartos e corredores das casas de apoio são povoados por histórias de lutas contra doenças graves. Casos como o de Flora Crozzer, 61 anos, cantora de música gaúcha, temporariamente silenciada por um câncer no esôfago. Moradora de Palmas, ficou três meses a fio na Casa de Apoio Ideal. Em oito meses de tratamento, passou por 28 quimioterapias e 32 radioterapias. Como uma peregrina, tem muita fé. “É bem cansativo, mas, se Deus quiser, eu vou melhorar logo e voltar a cantar. Vamos gravar um DVD lá no sítio em que moro”, afirma.

A maioria vem de longe. A viagem que trouxe Maria Donizeti Corrêa, 57 anos, e o irmão dela, o agricultor Jorge Corrêa da Silva, 49 anos, durou mais de dez horas. Há nove anos, eles se deslocam de Assis Chateubriand a Curitiba em um micro-ônibus para Maria ser submetida a tratamento cardíaco e pulmonar. “Para nós, era melhor que fosse [feito] em Toledo. Mas encaminham a gente para cá”, resigna-se Silva.

Para a Secretaria Muni­cipal de Saúde, o principal impacto desse fluxo é contribuir para que o número de procedimentos feitos pelo SUS seja maior do que o previsto pela programação assistencial de Curitiba. “É uma diferença que não está sendo coberta”, aponta o secretário Adriano Massuda. A pasta estima que esse déficit gire entre R$ 1 milhão e R$ 1,5 milhão. A secretaria pretende chegar a um valor exato para renegociar a programação com o Ministério da Saúde.

Convênios garantem estadia gratuita

Na esteira desse fluxo de pacientes – muitos sem onde ficar em Curitiba –, as casas de apoio se consolidaram. Em geral, elas mantêm convênios com prefeituras de todas as regiões do estado, por meio dos quais os pacientes podem pernoitar e se alimentar durante o período em que permanecem na cidade, sem pagar nada. Além das casas regularizadas, estima-se que existam três dezenas delas funcionando informalmente – sem alvará ou com outra atividade discriminada.

“Se não fossem as casas de apoio, essas pessoas não poderiam se tratar. Pouquíssimos teriam condições de pagar para comer e ficar na cidade durante o tratamento. A gente preenche um buraco que é dever do Estado”, pontua Leandre dal Ponte, fundadora da Casa de Apoio Ideal, a maior de Curitiba.

O local mantém contrato por licitação com 218 municípios do Paraná. Em média, cada prefeitura repassa à Ideal R$ 37 por diária de paciente acolhido – que inclui estadia, café da manhã, almoço e jantar. As pessoas das cidades conveniadas não pagam nada. Precisam apenas programar a estadia, conforme o encaminhamento médico.

Os números da Casa de Apoio Ideal lembram os de um batalhão: são 408 camas, 50 funcionários e refeitório para 150 pessoas. Só de arroz, são preparados 50 quilos por dia. O estabelecimento começou as atividades há 15 anos, em uma casa de esquina. Hoje, o prédio abrange outras dez casas vizinhas, emendadas à primeira. A direção não sabe a dimensão exata do espaço ocupado pela entidade.

Esperança

Apesar da seriedade dos casos, o clima não é pesado. A solidariedade aparece em cada canto da casa. Em tempos de Copa do Mundo, os anexos com televisão ficaram lotados. Paralelamente, pessoas trocam experiências sobre seu tratamento, dando força umas às outras. “A gente dá uma esperança e também recebe uma palavra de apoio. Acaba criando uma patota. Fiz amigo até do Mato Grosso”, disse Hilário Nedorezec, 67 anos, morador de Irati que veio combater um câncer de próstata.

A fé também acompanha os “peregrinos”. Moradora de Guarapuava, Marilene Persolo está há um mês em Curitiba, fazendo tratamento contra um câncer. Viajou sozinha. “Sozinha, não. Com Deus e com as amigas da casa”, corrigiu a aposentada, que dorme ao lado de um livreto de São José. Bem humorada, ela passou o aniversário de 66 anos na casa de apoio. Recebeu mais de 150 mensagens de celular com felicitações. No dia seguinte, teve festa junina. “Estava uma beleza. Pena que eu não aguentei ficar muito”, disse.



Baixa complexidade
Casos simples também são encaminhados para tratamento na capital
Por três dias, o Santana ano 1997 foi a casa de uma família de Bandeirantes. As seis pessoas (três adultos, uma adolescente e duas crianças) viajaram 400 quilômetros até Curitiba para que o pequeno Gabriel, de 4 anos, fosse submetido a uma cirurgia para remover uma íngua inguinal – procedimento de baixíssima complexidade – no Hospital Pequeno Príncipe. Todos dormiram espremidos no carro, estacionado perto de um posto de combustível.
Histórias como essa revelam que mesmo casos simples – que poderiam ser resolvidos nas microrregiões dos pacientes – são encaminhados a hospitais de Curitiba. No Pequeno Príncipe, 2,3 mil cirurgias feitas no primeiro semestre deste ano (25% do total) dizem respeito a pacientes do interior do Paraná, vindos de 284 municípios diferentes.
A família de Gabriel diz que pensou em desistir da viagem por causa dos custos – foram mais de R$ 500, entre combustível e alimentação. Não entendem porque encaminharam para tão longe. “Se tivessem mandado para Londrina, dava para ter ido e voltado no mesmo dia”, disse Deise Siqueira, mãe de Gabriel.
Referência motiva a busca por tratamento
A peregrinação de pacientes a Curitiba em busca de atendimento de saúde tem um motivo claro: a cidade é referência em casos de alta e média complexidade. Se algumas microrregiões não têm hospitais com excelência para determinado tratamento, a solução é encaminhar à capital. “Curitiba sempre foi o polo. Historicamente, recebeu investimentos. Então, acabou agregando a demanda de diversos municípios e até de fora do estado”, disse o superintendente da Secretaria de Estado da Saúde, Paulo Almeida.
Os secretários ouvidos pela Gazeta do Povo apontaram que os encaminhamentos ocorrem porque não há, nas microrregiões, hospitais especializados, principalmente no tratamento de doenças graves. “O preconizado é que se encaminhe a Curitiba os tratamentos que não têm resolutividade na microrregião”, disse Vilmar Covatti, secretário-executivo do Consórcio Intermunicipal de Saúde Costa Oeste do Paraná (Ciscopar), que congrega 18 cidades. Há outros 22 consórcios que, juntos, abrangem todas as cidades do estado.
“Não temos, na região, uma instituição que dê a mesma qualidade no atendimento. Construir hospitais de referência por aqui seria algo mais demorado, que dependeria da União e do governo do estado”, disse o secretário municipal de Saúde de Carlópolis, Paulo César Alves.
Carlópolis, por exemplo, despacha cinco micro-ônibus lotados com pacientes, a cada semana. De Palmas, vêm dois ônibus por semana. O Ciscopar mantém uma linha diária para trazer as pessoas para tratamento médico.

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