Páginas

domingo, 3 de setembro de 2017

Será que o Brasil precisa de médicos cubanos?


por Angel Mar Roman no Blog Medicina Tem Limites
(Dica do César Titton)


Estive em junho deste ano em Cuba, compondo um grupo de 20 professores médicos brasileiros que atenderam solicitação do Ministério da Saúde do Brasil para contextualizar médicos cubanos que atuarão no programa Mais Médicos no Brasil, em continuação ao programa iniciado em 2013 e mantido por conta de seus ótimos resultados. O governo federal está sendo pressionado pelas prefeituras para manter os médicos estrangeiros.

Essa experiência me motivou a pensar sobre a pergunta que dá título a este artigo, a partir de uma reflexão sobre a formação médica no Brasil.

Desde a antiguidade, as sociedades humanas buscam atender às demandas de manutenção e recuperação da saúde coletiva. Inicialmente esse processo acontecia de forma não ordenada, respondendo aos grandes surtos e pragas que dizimavam populações e geravam pressões sociais. Com o Mercantilismo no mundo europeu, entre os séculos XVI e XVIII, os Estados nacionais passaram a se preocupar com a saúde da população, com o objetivo de assegurar boas condições produtivas aos trabalhadores, pois isso tinha reflexos diretos na geração de riquezas.

Uma sistematização mais elaborada e madura de uma política pública de saúde, orientada para a população, porém, só vai se iniciar em princípios do século XIX na Alemanha. A morbidade da população passa a ser parametrizada, além da simples contagem de nascimentos e mortes. 

Inspirado no modelo alemão, no início do século XX, o Reino Unido instituiu um sistema de serviços de saúde estruturado em três níveis hierarquizados de atenção. Essa estruturação consolidou-se após a Segunda Guerra com a criação do National Health Service – NHS (Sistema Nacional de Saúde) e mantém-se até hoje: 1º.atenção primária à saúde (APS), com as unidades ambulatoriais, porta de entrada do sistema. Esse nível, quando necessário, encaminha para os níveis: 2º. atenção secundária, com os especialistas e hospitais de médios recursos, e, 3º. atenção terciária, com os hospitais de referência, tipicamente os hospitais-escola. Assim, o cidadão recebe atenção médica, sempre partindo do nível que envolve cuidados de menor densidade tecnológica, a APS, apoiado numa parceria médico-família e num acompanhamento ao longo do tempo. Cada médico cuida de um grupo de famílias. Quando necessário (e só nesses casos), solicita consultoria ou encaminha aos outros níveis de atenção: secundário ou terciário. Ao final do tratamento nesses níveis, o paciente retorna ao seu médico de família.

Ora, esse é o sistema público adotado também no Brasil. Não é bom? Sim, é ótimo! E por que vemos tantos problemas?

Além das variáveis de ordem especialmente política, pesa a questão da formação médica no Brasil. Ela é ambientada na atenção hospitalar terciária (hospitais universitários), onde os cuidados são episódicos e pouco frequentes, quando deveria focar na atenção primária. É algo como se os veterinários se formassem tratando bichos de zoológicos: ficariam hábeis em tratar raridade e não saberiam cuidar de gato e cachorro.

Três pesquisadores ingleses constataram, em levantamento de 1961, replicado em 2001, que, numa população de 1000 adultos, cerca de 750 referem algum tipo de problema de saúde, mas apenas 250 buscam consultas médicas nos serviços de APS (nível primário). Desses 250, nove são internados e cinco encaminhados a um especialista (nível secundário). Somente um adulto, desse universo de 750 com queixas, precisará chegar a um centro médico universitário (nível terciário). Como se percebe, é na Atenção Primária à Saúde que se localiza a maior extensão do contato com a população. Os outros níveis de atenção cuidam apenas de um pequeno extrato já adoecido da população.

O problema é que as escolas de Medicina no Brasil têm como referência em seu modelo de formação, na melhor das hipóteses, aqueles nove que foram internados e não a maioria da população (os 250 que procuraram a APS). Portanto, mesmo atuando em uma pequena fração da população, os níveis secundário e terciário de atenção ditam, em grande medida, a lógica e as regras da formação nas faculdades de Medicina.

Mudanças mais recentes colocaram o aluno, durante um breve período, nas unidades de atenção primária. Mas o impacto é pequeno, dada a diluição dessa experiência no bombardeio de informações predominantemente de medicina hospitalar.

Essa forma de pensar saúde e doença fica mais comprometida ainda quando submetida à mercantilização, pois dirige os médicos a especializações para atender uma minoria de brasileiros privilegiados socialmente. O resultado é que precisamos trazer médicos cubanos, eles sim disponíveis e preparados para cuidar da saúde da maioria da população brasileira pobre e carente.

Espero que estas reflexões nos ajudem a compreender por que uma ilha, pobre como Cuba, consegue oferecer gratuitamente a seus habitantes uma das melhores assistências médicas do mundo (números da OMS atestam essa afirmação), enquanto um país rico como o Brasil vive esta tragédia cotidiana em que os ricos são flagelados com excesso de medicina e os pobres, com a ausência de cuidados básicos (números do Ministério da Saúde atestam essa afirmação).

Sim, o Brasil precisa de médicos cubanos. Infelizmente!

Nenhum comentário:

Postar um comentário