Lumena Almeida Castro Furtado é psicóloga, sanitarista, mestre em Saúde Pública e doutoranda na área de gestão.
Há mais de 30 anos atua nas mais diversas áreas do Sistema Único de Saúde (SUS) e na luta antimanicomial.
Já foi secretária municipal adjunta de saúde em São Bernardo do Campo e secretária municipal de saúde em Mauá, no ABC paulista.
Foi também secretária da Secretaria de Atenção à Saúde (SAS), Ministério da Saúde.
Com base nessa experiência, em entrevista ao Viomundo, ela faz um apelo aos conselhos Nacional de Secretários de Saúde (Conass) e dos Secretários Municipais de Saúde (Conasems): “Rejeitem essa absurda proposta do Ministério da Saúde! Não cedam aos interesses que estão por trás dessa proposta de mudança”.
“Não vamos apequenar a palavra ‘política pública’, aprisionando-a em privados interesses!”, enfatiza Lumena Furtado.
Segue a íntegra da nossa entrevista.
Viomundo – O Ministério da Saúde deve submeter à Comissão Intergestores Tripartite (CIT), nesta quinta-feira (14/12), a minuta de política de saúde mental. Lendo a proposta, a minha impressão como leiga é que ela privilegia internações.
Lumena Furtado – É isso, mesmo. Privilegia, sim, a internação em manicômios/hospitais psiquiátricos e comunidades terapêuticas, com um volume muitíssimo maior de recursos, invertendo completamente a perspectiva da política pública de saúde mental. Um retrocesso que nos remete a como era o cuidado nesta área há 30 anos.
Viomundo – Na prática, essa inversão significa o quê?
Lumena Furtado – Beneficiar o interesse econômico dos donos desses serviços que, pela sua natureza, impedem um cuidado continuado. Realizam um cuidado fragmentado, baseado na reclusão do sujeito. Diferente, portanto, de um cuidado em rede, a partir de um projeto terapêutico construído com base no protagonismo do usuário.Significa portanto diminuir drasticamente o investimento prioritário na rede aberta.
Nos últimos anos, o Brasil inverteu a curva do financiamento federal, que era majoritariamente para manicômios/ hospitais psiquiátricos e este passou a ser centrado na rede de cuidados abertos, pública, com serviços de cuidado intensivo 24h, em rede e em liberdade. Agora, a Coordenação de Saúde Mental do Ministério da Saúde quer inverter de novo a curva a favor dos manicômios e comunidades terapêuticas.
Viomundo — O que está por trás dessa proposta do Ministério da Saúde?
Lumena Furtado – Uma política pública não é apenas um amontoado de normas e regras de financiamento. Ela representa um projeto de sociedade, um projeto de mundo.
O objetivo dessa proposta do Ministério da Saúde é claro: interesses econômicos historicamente comprometidos com um jeito perverso de cuidar das pessoas com transtorno mental e um retorno a um modelo de cuidado centrado na doença e não no usuário, não nas pessoas.
Há 30 anos o Brasil constrói um projeto de como cuidar das pessoas com transtorno mental e em uso abusivo de álcool e outras drogas. É um projeto que parte do protagonismo dos próprios usuários e familiares, organizados em movimentos sociais, uma política que os consideram como sujeitos de direitos, cidadãos que devem ser acolhidos na sua diversidade, ser cuidados em liberdade.
Um movimento conectado com outros países, como a Itália, que também apostam nessa direção.
Assim, nesses 30 anos, remodelamos nossa rede de cuidados com a criação de mais de 3 mil serviços que vêm substituindo a lógica do cuidado asilar — dentro dos manicômios/hospitais psiquiátricos — pelo cuidado singular e aberto nas redes em cada território.
Esse movimento apoia-se também na Lei 10.216/2001 que, após um longo debate com a sociedade, apontou claramente a centralidade do cuidado em serviços de base territorial.
Outro ponto central nessa política é o compromisso com a defesa dos direitos humanos, comprovadamente desrespeitados nos manicômios/hospitais psiquiátricos.
Nada disso, infelizmente, faz parte das preocupações genuínas da proposta apresentada pelo Ministério da Saúde.
Viomundo – Nesses últimos anos, a rede psicossocial vinha tendo crescimento, não vinha?
Lumena Furtado – Essa pergunta é importante, pois eu gostaria de fazer um reparo na fala do presidente da Abrasco, Gastão Wagner, que, em entrevista ao Viomundo, disse que desde 2014 se reduziu drasticamente a abertura de novos Centros de Apoio Psicossocial (CAPS).
Isso não procede. Os dados oficiais do Ministério da Saúde mostram que os CAPS cresceram de forma contínua nos últimos anos.
Em 2014 e 2015, foram abertos 266 novos, além do crescimento de todos os outros serviços que compõem esta rede de cuidados e de forte investimento na formação dos trabalhadores.
Já a proposta do atual Ministério da Saúde representa um rompimento dessa política.
Viomundo — Além de ter como foco principal a internação em serviço fechado, que outros pontos da proposta do Ministério da Saúde a preocupam?
Lumena Furtado – Muitos pontos descaracterizam a Política Nacional, propõe mudanças que podem parecer sutis, mas que agravam esta guinada total de direção.
Cito dois. Um deles é voltar a investir em ambulatórios de saúde mental, logicamente para concorrer com os CAPS.
Voltar a investir em ambulatórios de saúde mental é dar centralidade ao cuidado não continuado, fragmentado, centrado em consultas e medicalização, favorecendo a agudização do sofrimento que passaria a ter como retaguarda a internação psiquiátrica.
Nesse sentido, já testemunhamos várias situações quando existiam grandes ambulatórios que promoviam mais a excessiva medicalização da vida e dos sofrimentos do que um cuidado de fato resolutivo.
Outra dimensão que muito nos preocupa: dinheiro da Autorização de Internação Hospitalar (AIH) de morador de manicômios/hospitais psiquiátricos não acompanhar a pessoa que vai para Serviço Residencial Terapêutico, mas continuar no hospital para que ele possa incluir novo paciente.
Isso desrespeita todos os princípios da política de desinstitucionalização, que hoje é contada com sucesso por milhares e milhares de brasileiros que voltaram a morar em liberdade, a ser cidadãos.
Viomundo – A senhora trabalha no SUS há mais de 30 anos. Já foi gestora municipal, secretária da Secretaria de Atenção à Saúde (SAS), Ministério da Saúde. Sabe, portanto, como é importante entender o que está por trás de cada portaria, de cada proposta de política, para tomar suas decisões. Diante dessa experiência, o que diria os seus colegas ?
Lumena Furtado — Temos que estar o tempo todo atentos aos fortes interesses contrários!
Faço aqui um apelo para que cada um não ceda aos interesses que estão por trás dessa proposta de mudança e faça um movimento vigoroso de exigir que o governo federal invista sim , mas na Rede de Atenção Psicossocial ( RAPS), que avançou bastante, mas tem ainda grandes desafios.
Que também melhore o financiamento dos serviços e apoie tecnicamente estados e municípios para um cuidado cada vez mais qualificado, mas sem mudar a direção dos nossos compromissos centrado no usuário como sujeito de direitos.
Faço um forte apelo ao Conass e ao Conasems, entidades que têm um papel central na consolidação do SUS, para que rejeitem essa absurda proposta do Ministério da Saúde. Resistam às pressões e apoiem os milhares de trabalhadores em todos os municípios e estados brasileiros que tem arduamente construido essa Política Pública em cada território.
Viomundo — Neste final de semana, a senhora esteve no Encontro de Bauru, no qual se comemorou e se refletiu sobre os 30 anos da luta por uma sociedade sem manicômios. O que encontro lhe mostrou?
Lumena Furtado – Fortaleceu a convicção de que estamos no bom caminho. Um usuário presente disse: “ Milito nesse movimento para que as feridas que os muitos anos de manicômio fizeram na minha alma e no meu corpo, hoje sendo curadas no CAPS, não atinjam outros cidadãos!”.
Cerca de 2 mil pessoas — quase metade usuários –participaram do encontro.
Vamos pactuar medidas que possam qualificar e ampliar a rede de cuidados em saúde mental, mas sem romper com os princípios de uma política que não é de um grupo político, partido, ou governo, mas uma política de Estado que vem sendo construída na direção do respeito aos direitos e à ampliação da cidadania.
Não vamos apequenar a palavra “política pública” aprisionando-a em privados interesses!
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