por Conceição Lemes no Vi o Mundo
Letícia já é uma meninona: 7 meses, 9,5 quilos e 69 centímetros. Paixão da família inteira.
“Quero fazer tudo direitinho desde já, para que a Letícia viva bem sempre – agora e no futuro”, derrete-se a mãe Talita Machado Boulhosa, 23 anos. “Nos empenharemos muito para que ela tenha não apenas uma boa saúde física mas também boa saúde mental e desenvolva plenamente a sua criatividade, a sua afetividade.”
Talita tem tudo para ver o seu sonho concretizado. E, como terceiroanista de medicina e filha de obstetras, já sabe disso. A filhota Letícia veio ao mundo justamente no início de uma revolução fantástica na pediatria brasileira.
“Letícia tem potencial para chegar aos 100 anos ou mais com qualidade de vida”, garante a médica pediatra, imunologista e pesquisadora Magda Carneiro-Sampaio, professora titular de Pediatria e diretora do Instituto da Criança (ICR) da Faculdade de Medicina da USP. “O segredo é a prevenção no momento certo, de acordo com a história pessoal e familiar de cada criança. É a pediatria ‘personalizada’.”
A médica explica. Grande parte das doenças que se manifesta a partir da quarta, quinta ou sexta décadas de vida, como diabetes tipo 2, infarto do miocárdio, acidente vascular cerebral, enfisema e osteoporose, pode ter suas raízes na infância ou mesmo na vida intra-uterina.
Logo, infância e adolescência são as idades ideais para a prevenção eficaz da maioria dos males de adultos e idosos. Ou seja, embora o pediatra só cuide da criança e do adolescente, a sua ação pode ser decisiva para todo o ciclo de vida.
“Em vez de nos preocuparmos apenas com a prevenção dos malefícios imediatos da infância, precisamos olhar também para a saúde e o bem-estar daquela criança que um dia será adulta e idosa, para que chegue a essas fases com qualidade de vida”, observa Magda. “Isso implica ficarmos atentos, na hora do atendimento, também para as ações de longo prazo.”
No Brasil, o Instituto da Criança é pioneiro no estímulo a essa mudança de mentalidade. Pretende rever e implantar uma nova pediatria para os bebês que, como Letícia, estarão na faixa dos 100 anos de idade no início do século XXII. Nesse sentido, muitas pesquisas estão em andamento. O objetivo é identificar fatores de risco associados a determinadas e propor novas estratégias de saúde para a população infantil brasileira. Um desafio e tanto para os próximos anos, que terá impacto enorme na vida futura dos brasileiros.
Viomundo – Hoje, a esperança de vida do brasileiro ao nascer é de 72,86 anos. A senhora não teme que a sua proposta de uma nova pediatria para bebês que vão viver 100 anos ou mais seja considerada fantasiosa por uns, elitizante por outros, já que ainda temos bolsões de pobreza?
Magda Carneiro- Sampaio – Fantasiosa não é. Em apenas 100 anos, a expectativa de vida da humanidade aumentou mais do que ela havia conquistado até o início do século XX. Hoje, no Japão e França, a esperança de vida é de praticamente 90 anos; prevê-se que nesses países muita gente, principalmente mulheres, terá 100 anos no começo do século XXII. Mesmo no Brasil, a média de vida já está em 72,86 — na década de 1950 era de apenas 47 anos. Um salto de 50% em meio século. Elitizante também não é. Embora num país pobre possa soar estranho falar em nova pediatria para bebês que vão viver 100 ou mais, esse é o futuro. E o papel da universidade é antecipá-lo. É para isso que o Brasil está crescendo.
Viomundo – A pediatria atual não atende às necessidades dos novíssimos brasileiros?
Magda Carneiro- Sampaio – Não basta. Nos últimos anos, houve redução significativa da mortalidade assim como da desnutrição infantil. As diarréias são um problema quase controlado, e a mortalidade infantil decorrente delas caiu em até 90% em algumas regiões. E aqui não se pode esquecer a ação eficaz da Pastoral da Criança, coordenada pela doutora Zilda Arns. A poliomielite foi erradicada no País, enquanto outras doenças infecciosas passíveis de prevenção por vacinação, como tétano e sarampo, diminuíram drasticamente. Detectou-se também um aumento médio de 4 centímetros na altura com que as crianças brasileiras chegam à escola.
Só que, daqui para frente, além de continuarmos atentos a essas questões, precisamos ter em mente que o recém-nascido de hoje será o adulto de 2040 e o idoso de 2070. Afinal, grande parte das doenças crônicas da vida madura tem início na infância ou na adolescência, quer sob a forma de hábitos predisponentes, como sedentarismo, tabagismo e alimentação errada, quer sob a forma de lesões propriamente ditas, por exemplo, a aterosclerose. Isso sem falar nas doenças que começam na vida intrauterina.
Viomundo – Aterosclerose na infância?
Magda Carneiro-Sampaio – Exatamente. Aterosclerose é o entupimento das artérias por placas de gordura, que, na vida adulta, causam infarto do miocárdio e acidente vascular cerebral, o AVC, ou derrame cerebral. Estudos de autópsias de crianças e adolescentes que morreram por causa de acidentes -- portanto sadias -- revelam que elas já tinham lesões de aterosclerose nos vasos sanguíneos. Isso significa que, embora os sintomas da aterosclerose sejam tardios, a doença começa a se instalar muito cedo. Logo, a aterosclerose é um problema pediátrico, e a prevenção precisa ser precoce.
Viomundo – A obesidade também tem raízes na infância?
Magda Carneiro-Sampaio – Em muitos casos, sim, e até mesmo na vida intra-uterina. Bebês com baixo peso ao nascer devido à insuficiência placentária estão mais sujeitos a sofrer de obesidade no futuro, conseqüentemente têm mais risco de diabetes tipo 2, infarto do miocárdio e acidente vascular cerebral. No Brasil, 9,2% dos recém-nascidos têm baixo peso, ou seja, nascem com menos de 2 quilos e 500 gramas.
Viomundo – Quais as causas do baixo peso ao nascer?
Magda Carneiro-Sampaio – Há dois tipos de bebês de baixo peso. Uns são prematuros mesmo; por algum motivo têm o parto desencadeado antes do tempo. Outros têm restrição de crescimento devido à insuficiência placentária. Aí, geralmente nascem de nove meses, mas são pequenos, pois não receberam na vida intra-uterina a quantidade de nutrientes adequada para se desenvolverem bem. São os chamados pequenos para a idade gestacional. Acontece que a má nutrição intra-útero produz alterações funcionais e estruturais no organismo dos bebês, que passam a poupar nutrientes. Mais tarde, quando expostos à comida, o metabolismo alterado na vida uterina favorece a obesidade.
Viomundo – Quer dizer que o mecanismo que garantiu a sobrevivência do bebê na barriga da mãe pode adoecê-lo no futuro?
Magda Carneiro-Sampaio – É a hipótese cada vez mais comprovada. Na luta pela sobrevivência, o feto adapta-se à desnutrição e passa a aproveitar ao máximo todos os nutrientes que recebe. Assim, acaba desenvolvendo um metabolismo “poupador”, que no fundo é controlado por certos genes que passam a se expressar em função da pressão ambiental, no caso, um ambiente com escassez de nutrientes. O problema é que esse mecanismo adaptativo perdura ao longo da vida e facilita o aparecimento da obesidade, da aterosclerose, da hipertensão, do diabetes tipo 2, entre outros males.
Viomundo – O que causa a insuficiência placentária?
Magda Carneiro-Sampaio – Anos atrás era causada principalmente por desnutrição materna. Hoje, decorre mais de tabagismo e pressão alta materna não controlada durante a gravidez. Mas há casos onde ainda não se consegue identificar a causa da insuficiência placentária.
Viomundo – Crianças que passam fome também estariam mais sujeitas à obesidade no futuro?
Magda Carneiro Sampaio – Com certeza. Crianças malnutridas, particularmente nos primeiros anos de vida, também desenvolvem metabolismo poupador. Aí, numa situação de maior oferta de alimentos, o organismo, acostumado a poupar, continua a economizar ao máximo os nutrientes disponíveis e a estocar gordura. E, assim, a obesidade se instala mais facilmente. Isso já foi comprovado em comunidades pobres de Alagoas. Pessoas que passam fome na infância engordam absurdamente na idade adulta quando têm um pouco de acesso à comida. É um ganho de peso desproporcional ao consumo de alimentos. Portanto, a melhoria das condições de saúde da mãe e da criança é vital para a prevenção eficaz das doenças do adulto.
Viomundo – No caso dos pequenos para a idade gestacional, o que pode ser feito?
Magda Carneiro-Sampaio – Uma estratégia a ser testada é mudar a alimentação desses bebês. Hoje, a tendência é superalimentá-los para que atinjam o mais depressa possível a curva normal de peso. Talvez o ideal não seja ganharem peso tão rapidamente. Mas a resposta definitiva só virá com as pesquisas.
Viomundo – Quanto tempo vai demorar essa resposta?
Magda Carneiro-Sampaio – Não dá para precisar, mas levará anos. Primeiro, estudaremos metabolicamente esses bebês e proporemos intervenções alimentares na tentativa de mudar a tendência à obesidade. Depois, os acompanharemos a médio e a longo prazo para verificar as repercussões. Só, aí, será possível estabelecer qual a melhor estratégia para cuidar dos pequenos para a idade gestacional, de modo a não terem problemas no futuro. Essa, aliás, é uma das áreas que serão alvo de investigação no projeto da nova pediatria para os bebês que vão viver 100 anos ou mais.
Viomundo – Fale um pouco sobre esse projeto?
Magda Carneiro-Sampaio – Em 2005, o pediatra João Guilherme Bezerra Alves, responsável pela pós-graduação do Instituto de Medicina Integral Professor Fernando Figueira, o IMIP de Pernambuco, e eu elaboraramos e coordenamos um grande projeto, com cerca de 200 pesquisadores de instituições de peso do País. Por meio de pesquisas, nosso objetivo é identificar fatores de risco tanto em crianças saudáveis como em doentes, de modo a produzir intervenções que permitam melhor qualidade de vida no futuro.
Viomundo – Traduzindo.
Magda Carneiro-Sampaio – Detectar precocemente e prevenir na infância e na adolescência as doenças crônicas que se manifestam geralmente a partir dos 40, 50 ou 60 anos. Queremos dar subsídios para a formulação de políticas públicas e interferir nos hábitos de vida da população infantil brasileira.
Viomundo – Além dos pequenos de baixo peso, que outras áreas serão alvo de pesquisa?
Magda Carneiro-Sampaio – Obesidade, hoje o problema nutricional mais freqüente no Brasil. É a área com maior número de pesquisas previstas. O objetivo é a detecção e o tratamento da obesidade na infância e adolescência para evitar ou, pelo menos, reduzir as suas complicações a longo prazo, como hipertensão arterial, diabetes, infarto do miocárdio, AVC e doença hepática crônica.
Viomundo – Cirrose?
Magda Carneiro-Sampaio – Isso mesmo. Existem adultos que têm inflamação crônica do fígado, e ela não é causada por vírus, consumo abusivo de bebidas alcoólicas, uso de outras drogas ou medicamentos, que são as origens conhecidas. Uma hipótese é que seja causada por obesidade na infância ou adolescência, que “entope” o fígado de gordura. Todo mundo imagina que quando uma pessoa emagrece, o fígado “emagrece” junto. Mas há pesquisadores que acham que o enxugamento do fígado não acontece, e a lesão é irreversível.
Viomundo – Que outros problemas serão pesquisados?
Magda Carneiro-Sampaio – Por exemplo, distúrbios emocionais. Em média, 15% das crianças atendidas em consultas pediátricas apresentam algum deles.
Viomundo – O que mais?
Magda Carneiro-Sampaio – Um outro grupo de pesquisadores vai investigar a prevenção de doenças respiratórias crônicas, sobretudo asma brônquica. Na infância, ela produz péssima qualidade de vida: a criança vive chiando, indo para pronto-socorro, fica muito insegura com medo de ter crises. Mas não é só. Há evidências crescentes de que levaria ao não desenvolvimento completo dos pulmões na infância, o que poderia contribuir para a criança ter enfisema na vida adulta. Bronquite, asma e enfisema foram, em 2001, a quarta causa de óbito no município de São Paulo entre as pessoas com mais de 60 anos.
Viomundo – No Brasil, a asma brônquica atinge que percentual da população infantil?
Magda Carneiro-Sampaio – Cerca de 13% das crianças em idade escolar. A propósito: nos países desenvolvidos, 12% a 18% das crianças são portadoras de alguma doença crônica iniciada na infância, como asma grave, anemia falciforme, câncer e artrite reumatóide. No Brasil, nós não temos esses dados. No entanto, sabemos que o aumento de crianças e adolescentes com doenças crônicas é global por várias razões: controle das doenças infecciosas preveníveis por vacinação, melhoria do estado nutricional e dos serviços de saúde e novos recursos terapêuticos. Por isso, vamos investigar exaustivamente quais fatores de risco podem afetar essas crianças na vida adulta e como contorná-los.
Viomundo – A nova pediatria só começará quando os resultados dessas pesquisas forem divulgadas?
Magda Carneiro-Sampaio – Claro que as pesquisas vão nos dar mais fundamentos para estratégias preventivas eficientes. Mas, uma coisa, nós, pediatras, temos que fazer desde já: mudar a mentalidade e aprender a ver naquele bebê à nossa frente o adulto e o idoso do futuro. É colocar na cabeça que somos médicos-chave para a longevidade de boa qualidade; logo, temos que nos preocupar também com a prevenção de doenças de longo prazo.
Viomundo – Seus colegas estão preparados para essa mudança?
Magda Carneiro-Sampaio – Sem exceção, todos nós, pediatras, vamos ter que aprender muito sobre doenças do adulto e do idoso, estudar epidemiologia e conhecer genética. Os colegas formados precisarão passar por reciclagem profunda, e os novos, receber formação diferente.
Viomundo – Os pais já poderiam começar a cobrar dos pediatras orientações para a prevenção de doenças do adulto no seu bebê?
Magda Carneiro-Sampaio – Devem. E, aí, solicitar tanto as orientações gerais quanto as específicas para cada criança. Suponhamos que a menininha tenha uma avó com osteoporose. A doença não é letal, mas diminui muito a qualidade de vida; leva à perda progressiva da densidade dos ossos, que enfraquecem e ficam mais sujeitos a fraturas. Por isso, toda criança e todo adolescente devem fazer atividade física, pois é nessas fases que se adquire massa óssea. Porém, se menininha tem história familiar de osteoporose, ela deve ser ainda mais estimulada a se exercitar. Já para o menininho cujo pai, avô ou bisavô teve problema cardiovascular precocemente, a orientação deverá ser centrada na alimentação saudável e na atividade física. É importante também que esse menininho tenha medida a sua pressão arterial e faça dosagem de colesterol mais cedo que os outros. É a pediatria do futuro, personalizada, com base na história de cada criança.
Viomundo – Mas não seria uma forma de “adoecer” as crianças cedo?
Magda Carneiro-Sampaio – Independentemente de se saber ou não, a criança carrega uma carga genética, e um processo potencial está em curso no organismo dela. É uma realidade. Portanto, se forem adotadas as medidas preventivas no momento certo, talvez ela não desenvolva determinada doença ou a tenha muito mais tarde, quando for bem velhinha.
Viomundo – Neste momento, o que os pais já podem fazer para que os filhos cheguem aos 100 anos com qualidade de vida?
Magda Carneiro-Sampaio – Muita coisa. Uma é tomar consciência da genética da família. Normalmente, as pessoas contam a história de doenças dramáticas, como o câncer, mas ignoram, por exemplo, aquele problema no joelho que incomoda muito a vovó, e que pode ser neuromuscular da idade, coluna ou vício de postura. Acontece que ele pode tirar absurdamente a qualidade de vida, e as pessoas encaram como se fosse normal, e não é. Por isso, a minha sugestão a pai ou mãe, é esta: na próxima vez em que a família se reunir, pergunte aos mais velhos quais as doenças da família no passado, mesmo que não sejam graves. São eles que sabem das coisas. Depois, sente com o pediatra e discuta essas informações. Será com base no levantamento da história familiar e nos riscos ambientais de cada criança que será possível fazer a prevenção adequada para cada uma a longo prazo.
Viomundo – Que outras medidas a senhora recomendaria?
Magda Carneiro-Samapio – A criança ser acompanhada por um bom pediatra, tanto faz de serviço público ou particular. O importante é que ele, além de orientar sobre o crescimento, a comidinha, as vacinas necessárias e tratar as otites e amidalites, também proponha medidas preventivas de acordo com os riscos de cada criança. Mas já aviso: não adianta o pediatra simplesmente dizer que os riscos são estes. É preciso principalmente que ele acompanhe a criança, para verificar se as orientações gerais, assim como as específicas, estão sendo seguidas e funcionando.
Viomundo – Quais são as orientações gerais?
Magda Carneiro-Sampaio -- São aquelas boas para todas as crianças e adolescentes: fazer alguma atividade física desde cedo; ter alimentação saudável, com mais frutas, verduras e legumes e menos sanduíches, refrigerantes e doces; tomar sol nos horários adequados; evitar o excesso de açúcar e de sal; ter cuidado em relação a sobrepeso. Já as medidas específicas, eu insisto, vão depender da história familiar de cada criança. Agora, é preciso os pais irem atrás disso e darem o exemplo. Alguns pais proíbem refrigerantes, mas tomam freqüentemente; outros exigem que os filhos tenham alimentação saudável, só que não a adotam. Assim, não dá certo.
Viomundo – Ou seja, vai depender também dos pais para a criança chegar aos 100 ou mais?
Magda Carneiro-Sampaio – Com certeza. O pediatra pode ajudar muito a fazer a prevenção no tempo certo. Mas ele é só o profissional que vai identificar os riscos e dar as orientações. Quem toma conta da criança são os pais. Eles é que terão que colocar em prática as medidas para a sua criança se tornar um adulto e um idoso com saúde, qualidade de vida e feliz. Por isso, gostaria de dar mais estas recomendações a você, pai ou mãe: estimule a leitura, o gosto pela arte, por ciência, a curiosidade em geral; imponha limites e transmita valores bem definidos; e, principalmente, não tenha limites para o amor e o afeto, dê-os com e à vontade.
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