Drauzio Varela na Carta Capital
Durante milênios, a medicina foi baseada em teorias improváveis, experiências individuais, ideologias e crendices populares. Bastava alguém dizer que aquela poção era boa para tratar ou prevenir determinada doença, para que todos passassem a usá-la.
Reflexos desse empirismo resistiram à passagem do tempo: ainda tomamos o remédio que a vovó receitava, chás milagrosos indicados por terceiros e assistimos à enxurrada de comerciais que apregoam no rádio e na tevê as propriedades mágicas da vitamina C, de comprimidos que curam gripes e de uma infinidade de outras panacéias.
Condutas médicas esdrúxulas foram adotadas durante séculos, sem qualquer contestação científica.
As parturientes eram obrigadas a guardar quarentena sem fazer sexo, sair de casa ou lavar a cabeça, e a tomar Malzebier para engrossar o leite. Crianças com hepatite A passavam dois meses de cama para proteger o fígado. Pessoas com mais de 50 anos deviam fazer repouso para poupar o coração. Vento frio nas costas provocava gripes e resfriados.
A medicina só conseguiu avançar quando o método científico foi incorporado à prática diária.
Hoje sabemos que o cigarro provoca câncer, que o ácido acetilsalicílico pode evitar infartos do miocárdio, que a quimioterapia aumenta os índices de cura das mulheres operadas de câncer de mama e que a atividade física é benéfica para o organismo em todas as fases da vida, porque chegamos a essas conclusões após análises estatísticas de pesquisas que envolveram milhares de participantes.
A partir da metade do século XX, inúmeros ensaios clínicos e estudos epidemiológicos criaram as bases da prática moderna, batizada com o nome de medicina baseada em evidências. Nós, médicos, somos defensores ferrenhos desse método de abordagem, porque com a ajuda dele erramos menos, curamos mais e evitamos tratamentos desnecessários.
Mas essa forma de fazer medicina só tem sentido quando o corpo de evidências é abrangente e não está sujeito a vieses estatísticos.
Um grupo de pesquisadores americanos publicou no The New England Journal of Medicine um trabalho que ilustra a afirmação.
Os autores revisaram 74 estudos submetidos ao FDA (o órgão oficial de controle de medicamentos nos Estados Unidos), dos quais participaram 12.564 pacientes. Esses estudos foram divididos em dois grupos.
No primeiro foi incluída a totalidade deles: 74. No segundo os autores levantaram separadamente os dados de 52 desses estudos, que chegaram a ser publicados em revistas especializadas.
A comparação mostrou que:
1) Dos 38 estudos que o FDA considerou apresentar resultados sugestivos da eficácia dos antidepressivos em questão, apenas um deixou de ser publicado.
2) Dos 36 estudos avaliados pelo FDA como negativos (falha ou baixa ação terapêutica) apenas três foram publicados; 22 não chegaram a sê-lo, e 11 foram publicados de forma considerada distorcida com o objetivo de sugerir eficácia.
Um médico consciencioso, disposto a fazer um levantamento da literatura sobre o tema, diria que em 94% dos ensaios clínicos esses antidepressivos se mostraram eficazes. No entanto, se ele tivesse acesso aos resultados completos submetidos ao FDA, essa eficácia cairia para 51%.
Os autores não discutem se os critérios empregados para submeter os manuscritos à publicação ou deixar de fazê-lo dependeram dos pesquisadores, das companhias farmacêuticas que patrocinaram as pesquisas clínicas ou das revistas médicas que os teriam recusado.
O fato é que as evidências encontradas nas publicações podem induzir os médicos a tirar conclusões otimistas, sobre a ação desses 12 antidepressivos.
Se mesmo a busca criteriosa de evidências científicas que sirvam de base para o bom exercício da medicina está sujeita a vieses estatísticos, imagine quantos erros cometem os despreparados que nem sequer se preocupam com elas.
Nenhum comentário:
Postar um comentário