No início da epidemia de Aids no Brasil, em meados da década de 1980, crianças que nasciam soropositivas para o HIV tinham uma expectativa de vida que não ultrapassava a infância. Apenas após o estabelecimento no país do acesso universal e gratuito aos medicamentos antirretrovirais, nos anos 1990, essas crianças passaram a ter maior chance de sobrevivência e começaram efetivamente a alcançar a adolescência e juventude, demandando, portanto, cuidados específicos. Ciente da necessidade de ações que preparem esses jovens para a maturidade, o pesquisador Luiz Montenegro, em dissertação de mestrado defendida na Escola Nacional de Saúde Pública (Ensp/Fiocruz), analisou aspectos da adesão à terapia antirretroviral de alta potência (Haart, na sigla em inglês), também chamada coquetel anti-Aids, e do comportamento sexual de adolescentes que nasceram infectados pelo HIV devido à transmissão vertical (de mãe para filho durante a gestação, o parto ou a amamentação).
Jovens vivendo com Aids se deparam com limitações que podem impedi-los de experimentar esse período da vida, visto que ter HIV significa estar sob cuidados permanentes, típicos de uma doença crônica |
Para o estudo, foram realizadas entrevistas com 18 adolescentes soropositivos, entre 15 e 20 anos, e duas infectologistas responsáveis pelo atendimento a esses pacientes. Segundo o pesquisador, no Brasil, entre os menores de 13 anos portadores do HIV, 84,5% se infectaram pela via vertical de transmissão. Calcula-se em 11,6 mil o número de casos acumulados nessa faixa etária no período de 1995 a 2008.
“Os profissionais de saúde que trabalham com esses jovens devem estar preparados para lidar com assuntos relacionados não só ao tratamento médico, mas também às angústias, aspirações e incertezas características dessa fase da vida”, diz Montenegro, que foi orientado por Mônica Malta, da Ensp.
Adolescentes vivendo com Aids se deparam com limitações que podem impedi-los de experimentar esse período da vida como seus colegas, visto que ter HIV significa também estar sob cuidados permanentes, típicos de uma doença crônica. Os cuidados envolvem várias doses de medicamentos diariamente, consultas médicas e exames rotineiros e até a possibilidade de hospitalização. Um grande desafio, portanto, é estimular esses adolescentes a aderirem ao tratamento antirretroviral e não o abandonarem ao longo do tempo.
“A aderência à Haart é um aspecto fundamental para alcançar boa resposta terapêutica e contribui de forma decisiva para a melhora da qualidade de vida de pessoas vivendo com HIV ou Aids”, afirma o pesquisador. As entrevistas feitas por Montenegro revelaram os principais aspectos que diminuem a adesão ao tratamento: o grande número de comprimidos e doses administrados diariamente; a interferência no estilo de vida e nos hábitos alimentares, devido à necessidade de tomar medicamentos em jejum ou nas refeições; os efeitos colaterais, como enjôos e náuseas; e uma comunicação deficiente entre médico e paciente.
"Os pacientes relataram dificuldades para administrar a grande quantidade de comprimidos nos horários prescritos sem serem vistos por parentes e amigos”, acrescenta Montenegro. “Essa interferência do regime terapêutico nas atividades cotidianas dos pacientes tende a gerar em alguns adolescentes uma sensação de aprisionamento e limitação”. Parte dos jovens fazia enorme esforço para manter sua condição de soropositivo em anonimato. Para isso, muitas vezes, decidiam por conta própria adiantar ou atrasar os horários dos medicamentos: assim, pessoas do seu convívio social não ficavam sabendo que eles eram portadores do HIV.
“O medo de ser estigmatizado e identificado como uma pessoa com HIV é bastante forte nos relatos dos participantes”, conta o pesquisador. “Eles demonstraram sentimentos de medo, rejeição e vergonha de viver com HIV. Esse componente psicológico, muitas vezes, leva à negação da infecção e ao consequente abandono do tratamento”. Por medo de sofrerem preconceito, quase todos os adolescentes entrevistados optaram por não revelar seu diagnóstico para colegas de escola, diretores e professores. “A busca por aceitação social parece exigir desses jovens um esforço adicional para omitirem seu diagnóstico e serem vistos como exatamente iguais aos outros”, destaca Montenegro. Em geral, eles só contam que são portadores do HIV aos parentes mais próximos.
Em sua dissertação de mestrado, Montenegro também avaliou como os adolescentes descobriram ser portadores do HIV e qual foi o impacto dessa descoberta. “Eles tiveram uma infância marcada por uso diário de medicamentos, realização rotineira de exames, consultas ambulatoriais frequentes e episódios de internação hospitalar”, descreve o pesquisador. “A consequência imediata dessas experiências foi a sensação de ser diferente das outras crianças, além das constantes dúvidas sobre seu estado de saúde. A maioria dos participantes teve certeza de seu diagnóstico até os dez anos de idade”. Alguns descobriram sozinhos; outros souberam de maneira gradual por responsáveis ou familiares. Somente um dos 18 adolescentes entrevistados tomou conhecimento de sua condição por meio do profissional de saúde. “Para os adolescentes consultados, a confirmação do diagnóstico soou como uma nova identidade, momento no qual afloraram sentimentos múltiplos, em particular raiva, ansiedade e revolta”, afirma Montenegro.
O tabu da sexualidade
A iniciação da vida sexual é outro momento difícil para os adolescentes com HIV. Eles relataram incerteza quanto ao momento certo de contar sobre sua infecção ao parceiro; medo de rejeição; receio de contaminar o outro; e dificuldades ligadas à negociação do uso de preservativo. “O direito do adolescente de manter seu diagnóstico em segredo entra em conflito com suas preocupações em relação aos parceiros sexuais”, comenta Montenegro.
Dos 18 adolescentes entrevistados, 8 se autodeclararam sexualmente ativos. Desses, a maioria afirmou usar frequentemente o preservativo, mas sem informar o parceiro sobre sua condição de portador do HIV. Segundo Montenegro, existe uma clara lacuna de conhecimento acerca de sexo seguro e sexualidade de forma mais ampla. O pesquisador também verificou que, embora fizessem tratamento há vários anos, muitos participantes tinham pouco conhecimento sobre o HIV e a Aids, o que sugere uma falha de comunicação entre os profissionais de saúde e os pacientes. “Foi perguntado aos adolescentes se eles desejavam saber mais sobre o vírus e a doença, mas quase a totalidade respondeu não ter interesse”, lamenta Montenegro. “Além disso, esses jovens apresentavam planos para o futuro bastante limitados”.
Nas entrevistas com as infectologistas, o pesquisador constatou que as médicas estavam atentas a elementos da personalidade dos adolescentes que pudessem influenciar na aderência ao tratamento. No entanto, em relação a questões de sexo e doenças sexualmente transmissíveis, muitas vezes, o diálogo ficava prejudicado pela vergonha dos adolescentes em conversar sobre o assunto e pelo medo das médicas de estimular um início precoce da vida sexual. “As dificuldades dos profissionais de saúde para chamarem os adolescentes soropositivos para uma conversa franca acerca da sexualidade e da saúde reprodutiva são motivo de preocupação”, diz o pesquisador. “Serviços de saúde mais preparados podem facilitar a promoção de autonomia no âmbito da sexualidade e, consequentemente, permitir que esses jovens façam escolhas informadas e tenham seus direitos reprodutivos assegurados”.
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