Expropriar bens surrupiados é ato político de justiça de classe
*Fátima Oliveira, especial para o Viomundo
Nos últimos três meses quase todo dia recebo, por e-mail, uma tenebrosa biografia de Dilma Rousseff. Uma corrente insidiosa, pedindo por todos os santos que seja divulgado, ao máximo possível, aquele alerta contra o eixo do mal.
No começo fiquei irada, mas achei melhor não dar atenção. Porém, essa gente que reza dia e noite sem parar para manter o status quo dos privilégios seculares, porque se julga eleita dos céus, é incansável. E, volta e meia, minhas caixas de emails lotam quase diariamente com a suposta biografia de Dilma Rousseff.
Havia um sujeito que mandava várias por dia. E tinha a pachorra de acrescentar que uma abortista como eu poderia demonstrar arrependimento não votando em Dilma Rousseff, condição para Deus ter piedade de mim! Era um moleque desocupado. Não há dúvida. Fui obrigada a colocar rejeição automática para o endereço eletrônico dele.
Foi quando então, comecei a matutar sobre o teor daquele email. A conclusão é que decerto é da lavra de militantes do adhemarismo, que parecia morto e enterrado. Aí, é apelar pro “Credo Incruz, Ave-Maria!”, pois o adhemarismo é uma seita perigosa. Vale relembrar que contra essa gente, urge também apelar pro “sangue de Jesus”, pois como dizem os mineiros “Sangue de Jesus tem poder”. Isto é, todo cuidado é pouco, portanto o grande lance é não deixar pedra sobre pedra.
A ressurreição das viúvas do Adhemar no entorno de Dilma, na tentativa desesperada de torná-la uma fada do mal, demonstrou ser um tiro que saiu pela culatra (vide o andar da carruagem das pesquisas eleitorais), pois não impediu que a sua candidatura deslanchasse e hoje é mais tchan-tchan-tchaaaaan e empana o brilho das demais, por não ser mascarada: não renega sua história de guerrilheira urbana, partícipe da luta pelas liberdades democráticas quando a democracia corria perigo!
Assim sendo, é hora de dar nome aos bois sobre a lendária expropriação do cofre do Adhemar de Barros (1901-1969) – médico; deputado estadual de SP (1935); interventor de São Paulo (1938-1941), indicado por Getúlio Vargas; duas vezes prefeito da capital paulista (1957 e 1961); duas vezes governador de SP (1947 e 1963); e candidato a presidente em 1955 e em 1960. Foi dono da Lacta, de fazendas de gado e de cacau; sócio da “Divulgação Cinematográfica Bandeirantes” e da Rádio Bandeirante, que originaram a Rede Bandeirante, hoje presidida por seu neto, Johnny Saad (João Carlos Saad). Apoiou o Golpe Militar de 1964, mas em 05.06.1966 teve o mandato de governador cassado e os direitos políticos suspensos por dez anos. Exilou-se em Paris.
O estilo Adhemar era o “Rouba, mas faz”, cunhado pelo adversário Paulo Duarte, na eleição a prefeito de 1957. O slogan pegou, pois ele foi exonerado do cargo de interventor, em 1941, acusado de corrupção e em 1956 o “Caso dos Chevrolets” motivou o seu exílio no Paraguai e na Bolívia. Inocentado nos dois casos, Adhemar encomendou a Benedito Lacerda e Herivelto Martins a marcha “A Caixinha do Adhemar”: “Quem não conhece/ Não ouviu falar,/ Na famosa “caixinha do Ademar”,/ Que deu livro, deu remédio, deu estrada,/ Caixinha abençoada (…)/ Deixa falar toda essa gente, maldizente, /Deixa quem quiser falar (…) Enquanto eles engordam tubarões,/ A caixinha defende o bem-estar de milhões”. Falam que “Em um comício em Bauru, Adhemar, batendo a mão no bolso, disse: ‘Neste bolso nunca entrou dinheiro do povo!’ Alguém gritou: ‘De calça nova, né doutor?’”
Ora me compre um bode, expropriar não é roubar! Expropriar exploradores em tempos de guerrilha é ético! Quem roubou foi o Adhemar. A despeito da segunda viúva dizer que no cofre não havia um derréis, havia dinheiro público roubado e dinheiro ilícito, oriundo das propinas: a famosa “Caixinha do Adhemar”. Reza a lenda que ele vendeu a laboratórios particulares vacinas doadas por organismos internacionais e mandou aplicar vacinas de água! Conforme Antônio Espinosa, comandante militar da VAR-Palmares: “Não era um, eram dez cofres. Cerca de 25 milhões de dólares, distribuídos em várias casas no Rio de Janeiro” (“O cofre do Dr. Rui: toda a história”).
O “Cofre do Adhemar” (apenas um!) foi confiscado em cinematográfica operação da Vanguarda Armada Revolucionária-Palmares (VAR-Palmares) em 18.07.1969, integrada por dois ministros do governo Lula: Dilma Rousseff e Carlos Minc, que não estavam na cena da expropriação – casa de Ana Gimol Benchimol Capriglione, amante do ex-governador, em Santa Teresa, no Rio de Janeiro.
Dilma e Minc abriram mão dos confortos da pequena burguesia pela luta popular contra os podres poderes. São patriotas de raro senso de justiça, pois como disse o Capitão Lamarca: “Depois de uma longa investigação, localizamos uma parte da famosa ‘caixinha’ do ex-governador de São Paulo Adhemar de Barros, enriquecido por anos e anos de corrupção. Conseguimos US$ 2,5 milhões. Esse dinheiro, roubado do povo, a ele será devolvido”.
E-mail: fatimaoliveira@ig.com.br
*Fátima Oliveira é médica e escritora. Feminista. Integra o Conselho Diretor da Comissão de Cidadania e Reprodução e o Conselho da Rede de Saúde das Mulheres Latino-americanas e do Caribe. Escreve uma coluna semanal no jornal O Tempo (BH, MG), desde 3 de abril de 2002. Uma das 52 brasileiras indicadas ao Nobel da Paz 2005, pelo projeto 1000 Mulheres para o Nobel da Paz 2005.
Autora dos seguintes livros de divulgação e popularização da ciência: Engenharia genética: o sétimo dia da criação(Moderna, 1995 – 14a. impressão, atualizada em 2004); Bioética: uma face da cidadania (Moderna, 1997 – 8a.impressão atualizada, 2004); Oficinas Mulher Negra e Saúde (Mazza Edições, 1998); Transgênicos: o direito de saber e a liberdade de escolher (Mazza Edições, 2000); O estado da arte da Reprodução Humana Assistida em 2002 eClonagem e manipulação genética humana: mitos, realidade, perspectivas e delírios (CNDM/MJ, 2002); Saúde da população Negra, Brasil 2001 (OMS-OPS, 2002).
Autora dos seguintes romances: A hora do Angelus (Mazza Edições, 2005) e Reencontros na travessia: a tradição das carpideiras (Mazza Edições, 2008).
Belo Horizonte, 18 de abril de 2010
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