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sexta-feira, 2 de abril de 2010

Sempre faz bem reencontrar uma amiga: Ercília Macedo-Eckel

No Santuário de Cora Coralina



Ercília Macedo-Eckel


             No final de 2001 José Mendonça Teles me autografou No Santuário de Cora Coralina. Dias depois (11 de dez.), a Academia Feminina de Letras e Artes de Goiás encerrou brilhante e saudosamente, nesse mesmo santuário, suas atividades do ano. Na ocasião lá estava o autor nos prestigiando, tanto na casa de Goiandira do Couto, quanto nas homenagens _ aos nossos 32 anos de fundação _ patrocinadas pelo prefeito Boadyr Veloso, no Hotel Vila Boa. Magnífica festa! Apresentamos coral, jogral, cantos e falas enaltecendo a Antiga Capital e sua gente.
Protelei e protelei um contato com José Mendonça para agradecer-lhe a gentil oferta dessa 2.ª edição e descrever-lhe meu coração emoldurado na saudade de minha infância e juventude inebriadas de damas-da-noite e vividas na rua em cuja esquina estava a casa de Octo Marques. A sala de entrada do artista era um ateliê improvisado e as paredes usadas como as telas que figuram no livro em questão: burrinhos de carga e/ou urubus coadjuvam os temas locais. De tempo em tempo o mendigo de Deus renovava os painéis, pintando outros sobre os anteriores. Do lado de fora da janela-Moreira eu via tudo com olhos de menina curiosa, da Rua Travessa. Via também a felicidade de Octo, recebendo os congos na época de devoções populares. Encantava-me o aparato daqueles homens: sua coroas, chapéus, plumas; suas roupas coloridas e brilhantes; seus colares, suas fitas. Os reco-recos das compridas cabaças, os guizos dos pandeiros e sons rústicos de origem negra misturavam-se ao queixume indígena, indo e vindo sobre os mesmos passos:

Arirê, cum! cum!
Arirê, cum! cum!
............................
Ô congo arirê!

            E ouvia a simulação guerreira na Dança do congo:

Moça goiana
chega à janela.
Vem ver o congo
que vai pra guerra.
Eu vai pra guerra.
Vai guerreá ... á.
Se não morrê ... ê
hei de vortá ...
............................

            Na pág. 115, vemos José Mendonça com o braço no ombro de Consuelo Caiado. Ah, Consuelo! Era diretora do Gabinete Literário. Minha avó, muito enérgica, mandava-me tirar as dúvidas das matérias do Liceu naquela Farmácia (do sobrado cheio de jornais nacionais e franceses) e ponto de encontro dos amigos. De quebra, aprendi que não se dobra o canto das folhas do livro; exercitei-me na leitura pequenininha das notas de rodapé no compêndio de História Geral; pratiquei a pronúncia correta de nomes franceses e a consulta ao glossário, para o entendimento de palavras técnicas, específicas _ ou em desuso_ de cada disciplina. Finalmente aprendi que  moça não se senta e fica batendo um joelho contra o outro. Nem vou dizer o que significa!
            Conheci e ouvi Xará, em frente à minha casa, cantando:

Encontrei Maria
dentro do jardim
tá panhano frô
pra jogá ni mim.
..........................

            As modinhas goianas mexem fundo no coração da gente. Parei!_com saudade das ruas de pedra_eu só, sem mais ninguém, quando José Mendonça matou a vontade de escrever alguma coisa sobre o toque genial de Maria Augusta Calado nos acontecimentos artístico-culturais de nosso Estado.
            Quando vim da fazenda, para cá da Colônia de Uvá, a fim de fazer o primário, ouvi pela primeira vez Noites goianas, no Cemitério São Miguel, ao som  de violinos. Fiquei fascinada. Os alunos do Grupo Escolar Manuel Caiado e de outros estabelecimentos tivemos que prestigiar o enterro de uma urna que trazia os ossos de grande figura goiana. Creio que do poeta Joaquim Bonifácio de Siqueira, autor da letra desse hino oficial (e não de Joaquim de Sant’Ana que o musicara).
            À medida que avançava na leitura, mergulhava no tempo:  sentia o gosto dos quintais, o cheiro dos casarões; tateava os musgos dos becos; re/via praças, largos, chafarizes bebendo a lua; ouvia a Pinta preta _ que eu tenho no lado direito do rosto _ tantas vezes declamada pelo poeta Ygino Rodrigues, no ouvido de sua enorme e tísica solidão.
            Também ouvia as vozes de meus antigos professores, postadas nas paredes do velho Liceu, como numa torre de Babel entrecruzando as matérias: Haydée Bastos (Hist.), João Perilo (Ciências), Edla Pacheco/Dolcy Caiado (Mat.), Carlota Jubé (Geog.), Goiandira do Couto (Des.), Laíla Amorim (Francês), Maria Leite (Ed. Fís.) e muitos, muitos outros mestres do giz e da palavra. Polivalentes! Dolcy Caiado me iniciou na arte do discurso e da declamação poética, no salão nobre daquele velho Liceu.
            De tanto as cigarras chamarem chuva nos quintais de Goiás, o rio Vermelho, avozinho de Cora, resolveu orquestrar uma sinfonia tempestuosa (4.° movimento da n.°6, de Beethoven?) e ofuscar os fogos de artifício no Réveillon/2002. A enchente de 1839 retornou como um fantasma para Luiz do Couto, querendo arrastar de volta para Catalão a Cruz do Anhangüera. Rolinhas-fogo-pagô não mais vêem a areia limpa do terreiro; lagartixas balançam astutamente a cabecinha, do alto das mangueiras, procurando pedras no muro para alugar; urubus emergem das pontes e sobrevoam as águas ao anoitecer. A cidade se dissolve humildemente num batismo coletivo.
            Vejo Marlene Velasco, Maria Veiga e outros amantes ardorosos dessa terra limpando e carregando com cuidado os filhos e as folhas da história, na madrugada do novo tempo. Vejo, ainda, Marcelo Barra puxando serenata e seresteiros, Goiandira acima, Rosário abaixo, parando na porta de todas as idades, fazendo adivinhações, plantando emoções no cais da cidade pastada, lanhada e lacerada. E da cidade coralina, cheia de esperança, florida, revestida de abril para o mundo inteiro. Um sarau alegre chega ao antigo mercado e vai se dispersar no Largo do Chafariz. Nesse concerto noturno estariam Nice Monteiro, Sílvia Curado, Brasilete Caiado, Augusta Faro, José Mendonça, Helinho Brito, Ana Taveira, Marco Antônio Veiga, Maria Lucy, Iracema Malheiros, Fernando Cupertino... Poder e povo. Muita gente humilde dando e colhendo espigas de soliedariedade para a reconstrução das pontes, sobrados, telhados, paredes e muros verdes de avencas.
            As vozes de Elder Camargo, Ouvidinho, Ely Camargo, Bartira, Rita Ludovico e dezenas de outra vozes soam na passarela das igrejas e mosteiros e nos autos do passado. Márcio Alencastro Veiga, ao violão, sola Rio Vermelho e desce da solidão dos morros uma lava boêmia, expelindo chispas de amor contra a fúria das águas profanas que invadem a biquinha sob a ponte. Sus Cristo! Cora arrasta chinelos desabusados no assoalho do medo, levanta muletas sem preconceitos, comanda a torre dos ventos sobre a qual essas águas cavalgam e  toma a bênção das lavadeiras,  na manhã de um novo dia que começa. Goiás ressurgirá purificada e regenerada. Tão linda como em minhas retinas de criança.
            Santuário seria uma imagem cúltica usada por José Mendonça Teles para a cidade de Cora Coralina e para sua casa (dela) que, como a Arca, guarda tábuas, escritos e documentos seculares da aliança e união entre os goianos, em meio de grandes cerimônias e reformas, como as que presenciamos agora.

Caldas Novas, 13 jan./2002.

Ercília Macedo-Eckel – é membro da Academia Feminina de Letras e Artes de Goiás, da UBE/GO e da Academia Petropolitana de Letras_RJ. Mestra em letras pela UFG.
http://www.erciliamacedo.com.br/osportaisdaviagem.html

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