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sexta-feira, 26 de novembro de 2010

A anta que virou elefante num Domingo Espetacular

José Ribamar Bessa Freire

A segunda-feira da índia Rosi Waikhon na periferia de Manaus foi um dia de cão. Escapou, por pouco, de ser apedrejada. Ao sair de casa, várias pessoas lhe atiraram na cara frases do tipo: “Ei, índia, você não é gente, índio mata o próprio filho, vocês deviam morrer”.Minha amiga há muito tempo, ela me confidenciou: “Meu dia virou um terror, em todos esses anos, nunca tinha ouvido palavras tão pesadas e racistas”.
Quem humilhou Rosi estava indignado, porque no dia anterior havia presenciado o ‘assassinato’ de crianças indígenas, cometido pelos próprios pais, que praticam o ‘infanticídio’, tudo isso exibido no programa Domingo Espetacular da TV Record. Felizmente, como nos filmes americanos, chega a cavalaria para salvar vidas ameaçadas por índios bárbaros. A missionária evangélica Márcia Suzuki, cavalgando a emissora do Edir Macedo – tololoc, tololoc – leva os bebês arrancados das garras dos ‘criminosos’ para a chácara da igreja neopentecostal. Enfim, salvos.
As pessoas viram trechos do vídeo ‘Hakani’ com o sepultamento de uma criança viva. A voz cavernosa de um narrador em off anuncia que se trata de prática generalizada: “A cada ano, centenas de crianças são enterradas vivas na Amazônia”. O xerife Henrique Afonso, deputado federal do Acre, quer prender os ‘bandidos’. Faz projeto de lei que criminaliza o ‘infanticídio indígena’, invoca a Declaração Universal dos Direitos Humanos e apela ao papa Bento XVI para que “intervenha contra o crime nefando”.
Como tem gente boa no mundo, meu Deus! Mas sobrou para Rosi que viveu uma ‘segunda-feira espetacular’. Quase foi linchada. Não foi a única. Rosi é índia Waikhon – etnia conhecida também como Piratapuia. Mora na Terra Indígena Alto Rio Negro, em São Gabriel da Cachoeira (AM) e está de passagem por Manaus. É educadora e líder da Foirn – Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro. Escritora, participou de dois Encontros de Escritores Indígenas na UERJ. Ela faz um apelo:
- “Gostaria de pedir aos senhores que não continuem usando o termo INFANTICIDIO INDIGENA. Por favor, não aumentem o preconceito e o racismo contra nosso povo”.

Xamãs e bruxos
Afinal, os índios cometem infanticídio? Essa é mesmo uma prática generalizada na Amazônia? Francisco Orellana, o primeiro europeu que cruzou o rio Amazonas dos Andes ao Atlântico, em 1540, viu coisas muito estranhas. A crônica da viagem – repleta de ‘domingos espetaculares’ - conta que ele se deparou com elefantes em plena selva, comeu carne de peru, bebeu cerveja feita pelos índios e combateu as precursoras do infanticídio - mulheres guerreiras que matavam seus filhos homens. A Europa acreditou piamente em suas histórias.
Orellana, coitado, sentiu o mesmo problema do xerife Henrique e da cavaleira Suzuki: como descrever aquilo para o qual não tenho palavras? Orellana viu antas bebendo água no rio. Não existia esse animal na Europa, nem muito menos a palavra anta nos dicionários. Como dar conta dessa realidade desconhecida, nova e estranha? O bicho era grande? Era. Tinha tromba? Tinha. Então, ele sapecou: “vi elefantes”. Afinal, elefantes são grandes e tem tromba. O mesmo com as mulheres que combateu. Na Europa, mulheres não iam pra guerra. Então, Orellana recuperou o mito grego, que a Europa conhecia muito bem.
Esse processo de equivalência entre objetos conhecidos e objetos novos foi muito usado nos registros coloniais. Ele consiste em definir fatos representativos de uma cultura com símbolos de outra cultura. Mutum passa a ser peru, caxiri se transforma em cerveja, inambu vira perdiz e mulheres que trocam o fogão pelo arco-e-flecha são amazonas. Essa operação reduz e simplifica enormemente a diversidade e a riqueza cultural, porque o símbolo não consegue transmitir toda a sua carga de significado de uma cultura a outra.
Foi assim também com os pajés e xamãs, que não existiam na Europa e foram denominados de ‘feiticeiros’ pelos colonizadores, com conotações altamente negativas que o equivalente não tem. As consequências foram trágicas, porque se ninguém mata uma anta pra extrair marfim dela, feiticeiros e bruxos eram, no entanto, condenados à fogueira.
O infanticídio é crime punido por lei. Denominar de infanticídio uma prática cultural que desconhecemos e que nos choca não ajuda a entendê-la, oculta a anta e não revela o elefante, além de ser um convite para criminalizar os povos indígenas e condená-los à fogueira. Quando os antropólogos ou agentes de pastoral do CIMI chamaram a atenção para tal leviandade e para o erro em generalizar para todos os povos, a ONG Atini os acusou de defenderem o ‘infanticídio’ porque querem impedir a mudança cultural.

Os antropólogos
Todos os antropólogos – TODOS – sabem que a cultura é dinâmica, isso faz parte do bê-á-bá da antropologia. Nenhum antropólogo – NENHUM - se manifesta contrário a mudanças, até porque isso seria inútil. Ao contrário, o que os antropólogos estão dizendo, para horror do agronegócio interessado nas terras indígenas, é que índio não deixa de ser índio porque usa computador e celular. Mas a emissora do Edir Macedo grita espetacularmente contra os antropólogos, sem citar nomes:
Há quem diga que a prática de matar crianças deficientes, gêmeas ou filhas de mães solteiras deve ser defendida para manter a cultura”.
Não cita o nome de um só antropólogo, nem o livro ou artigo de onde foi pescada tal ‘informação’, porque ela é falsa. Na realidade, o que se pretende é quebrar a parceria com os principais aliados dos índios na luta pela saúde, educação e demarcação da terra. A ABA - Associação Brasileira de Antropologia, através da Comissão de Assuntos Indígenas, já havia publicado nota esclarecedora assinada por João Pacheco.
O vídeo Hakani – diz a nota – não é um registro documental proveniente de uma aldeia indígena, mas o resultado de uma absurda encenação realizada por uma entidade fundamentalista norte-americana. Utilizado como base para uma campanha contra o infanticídio supostamente praticado pelos indígenas, tem também a finalidade de angariar recursos para as iniciativas (certamente mais ‘pilantrópicas’ do que filantrópicas) daqueles missionários”.
Diz ainda que a prática daquilo que estão chamando inapropriadamente de infanticídio entre os indígenas “são virtualmente inexistentes no Brasil atual”. Ali onde eram localizadamente praticadas estão deixando de existir com a assistência médica e a demarcação de terras, por decisão dos próprios índios, conforme esclarece Rosi:
Sou indígena, meu povo também tinha essa prática, mas não precisou de ONG nenhuma intervir para mudarmos. Os gêmeos, trigêmeos e os deficientes indígenas da região em que vivo estão sobrevivendo sem intervenção de Ong. Por favor, não peçam dinheiro em nome do infanticídio indígena”.
A nota da ABA reforça: “Por que substituir a mãe, o pai, os avós, as autoridades locais por uma regulação externa e arbitrária? As crianças indígenas não são órfãs. Bem ao contrário, estão melhor protegidas e cuidadas no âmbito de suas coletividades e por suas famílias. Uma intervenção indiscriminada, baseada em dados superficiais e análises simplórias, equivocadas e preconceituosas, não poderá contribuir para políticas públicas adequadas a estas populações”.
O abandono e morte de crianças indígenas com sofrimento, dor e tensão foi a resposta dada por algumas comunidades a um infortúnio ou desgraça que as acometia e que está sendo discutido e solucionado pelos próprios índios diante da nova situação em que vivem. Doía tanto quanto para Abrahão matar seu filho.
Então, ficamos combinados assim: uma anta é uma anta, um elefante é um elefante, a resposta dada por algumas comunidades tem tromba e é grande, mas não é elefante, e o Edir Macedo é....bom todo mundo sabe o que é Edir Macedo.

TROCA DE CARTAS ENTRE ROSI WAIKHON E MÁRCIA SUZUKI
Houve uma troca de cartas, via e-mail, entre a índia Rosi Waikhon e a missionária Márcia Suzuki, da Ong Atini. Rosi revisou o texto para publicação e me autorizou a fazer circular alguns trechos, aqui publicados por se tratar de um documento útil a quem se interessa pelo tema.

1ª. CARTA DE ROSE (13/11/2010) - Na primeira delas, Rosi critica:
“Encontrei na internet comentários, com mensagem racista e preconceituosa postada por um cidadão que leu a matéria de vocês intitulada ‘Infanticídio Indígena’. Ele chamou a nós indígenas de desumanos, e isso graças à forma como vocês estão tratando o assunto. Gostaria de pedir aos senhores que não continuem usando o termo ‘infanticídio indígena’. Por favor, não aumentem o preconceito e o racismo contra nosso povo”.
“Na sociedade de vocês, estou cansada de ver: babás filmadas por câmeras ocultas espancando bebês em suas casas; torturas nas creches; recém-nascido jogado no lixo; crianças revirando lixo nas ruas, crianças estupradas, crianças com síndrome de Dow mortas pelos pais, outras jogadas do alto dos prédios, queimadas, espancadas, mortas, assassinadas. Isso no meu olhar indígena é infanticídio, mas nós, índios, não fazemos isso. Por favor, não peçam dinheiro em nome do infanticídio indígena”.
“A questão por mim colocada é para que vocês OLHEM o infanticídio em volta de vocês no lugar de só procurarem entre os índios. O estado brasileiro QUANDO encontra a mãe que faz isso, bota a mulher na cadeia, não quer saber se essa mãe tinha casa, se estava passando fome, se sofria alguns distúrbios, se pelo menos essa mãe conseguiu fazer o pré-natal no posto de saúde. Sou contra o racismo e a xenofobia contra o nosso Povo Indígena, ainda mais provocado sem pensar, por isso recomendo que tratem do INFANTICÍDIO e não apenas dos povos indígenas”.

RESPOSTA DE MÁRCIA (13/11/2010)– A dirigente da Ong Atini responde insistindo no uso da palavra infanticídio. Argumenta que a definição do termo vem do latim – /infanticidium/ – que significa a morte de criança, especialmente recém-nascida. Reconhece que ele é amplamente cometido na sociedade brasileira, mas que existem outras ONGs para cuidar disso: “Conheça-nos melhor, sra. Rosi, assista nossos vídeos. Veja Rosi, são os próprios indígenas que falam. Depois de assistir a esses vídeos e ler nosso material entre em contato dizendo o que achou, por favor”.

2ª. CARTA DE ROSI (14/11/2010) - Rosi assistiu o documentário ‘/Quebrando o silêncio’/ feito pela ONG Atini e dirigido por Sandra Terena, onde se afirma que “crianças indesejadas são condenadas à morte por nascerem com deficiência física ou mental, por serem gêmeas, filhas de mãe solteira ou ainda por serem vistas como portadoras de azar para a comunidade”. O documentário traz depoimentos de vários índios do Brasil central sobre o que a ONG classifica como infanticídio: “a tradição manda que as crianças sejam enterradas vivas, sufocadas com folhas, envenenadas ou abandonadas para morrer na floresta”.
Rosi leu o texto “A estranha teoria do homicídio sem morte”, de Marta Suzuki e deu, então, uma longa resposta, afirmando que sua interlocutora não compreendeu a profundidade do assunto, desconhece os estudos dos antropólogos, a quem ataca, e assume “as piores interpretações possíveis sobre os povos indígenas, sobretudo as questões das mulheres indígenas”.
Os principais trechos vão aqui selecionados:
“Sou indígena. Entendo perfeitamente o que meus parentes indígenas do centro do país estão dizendo. Respeito o modo de pensar deles. Meu povo também tinha essa prática, mas não precisou de ONG nenhuma intervir, achando que somos incapazes de resolver nossos problemas”.
“Quero dizer-lhe que os gêmeos, trigêmeos e os deficientes indígenas da região do Rio Negro, onde moro, estão todos vivos, sobrevivendo sem intervenção de ONGs. Apesar da ineficácia do sistema de saúde indígena, tivemos sim apoio da equipe de saúde nas reflexões e tomadas de decisões com relação ao assunto”.
“Mas a ineficácia crônica dos poderes públicos com relação à assistência aos povos indígenas é grande. Isso sim tem que ser documentado, mostrando a verdadeira face de como os povos indígenas são tratados no Brasil. Os profissionais que atuam em áreas indígenas têm que ser melhor qualificados, as escolas e as universidades devem ter aulas de história indígena para explicar a diversidade e a peculiaridade de nossos povos”.
“A falta de aprofundamento de estudos por parte da ONG deixa muito a desejar. Uma vez veiculada na mídia, a ideia do indígena ruim e mau já foi repassada, não tem como reverter. Vocês deveriam ter refletido que no nosso país tem muitos analfabetos de conhecimento indígena. Deveriam ter pensado que ao tratar dos povos indígenas, as interligações são diversas. Deveriam pensar uma melhor maneira de tratar o assunto, porque ele é mais profundo do que vocês imaginam”.
“Os internautas que são analfabetos em assunto indígena não vão querer saber o contexto de cada caso, e jamais irão compreender, pois esse assunto não se estuda em academias e muito menos nas escolas. Generalizar para eles é mais simples e fácil, provocando conceitos racistas e xenofóbicos, assim como está ocorrendo”.
“A questão não é julgar e condenar ninguém, mas esclarecer que o desejo de AJUDAR os povos indígenas não se resume em classificar cultura ruim e cultura boa, costume ruim e costume bom. Vai além disso, muito além. Quando os não-índios chegaram, também a intenção deles era AJUDAR, ‘civilizando-nos’ para os costumes deles, alegando que nossa cultura era atrasada, isso no olhar deles. Inconscientemente, vocês estão seguindo o mesmo caminho”.
“Quando procurados para resolver o assunto, deveriam ter encaminhado aos órgãos competentes brasileiros e não tomar para vocês a responsabilidade que é do Estado. Aí sim, vocês estariam ajudando o país a revisar as políticas públicas relativas aos índios e a combater a omissão do Estado”.
“Isso evitaria que os analfabetos em questões indígenas tivessem a interpretação que estão tendo, após o início da campanha de vocês. Na atualidade, o infanticídio está ligado à saúde pública e não somente à cultura desses povos. Mas o sistema de Saúde Indígena é ineficiente, com a maioria dos profissionais despreparados para atuar em áreas indígenas e lidar com tais assuntos. Os poucos profissionais competentes não são valorizados”.
“Essas questões e outras relativas à saúde pública não são aprofundadas por vocês. É fácil falar superficialmente, o difícil é falar da raiz do problema e buscar solução. O despreparo da maioria dos órgãos públicos para lidar com certos assuntos indígenas sempre foi e é um grande problema. Alguns avanços foram feitos, mas falta ainda muito a caminhar. É preciso cobrar do Estado suas responsabilidades”.
“Muitos séculos atrás, alguns naturalistas ocuparam infinitas páginas em seus diários, falando do infanticídio entre os povos indígenas. Mas pouco escreviam sobre as relações sociais familiares e a importância da criança indígena. Naquela época, éramos autônomos e felizes. Não existia Estado brasileiro, nem dinheiro, TV ou internet”.
“Por que será que registravam o infanticídio entre os povos indígenas e nada escreviam sobre o infanticídio cometido pelos povos ao qual pertenciam? É fácil enxergar e julgar os outros, o difícil é olhar ao seu redor, entender cada contexto e sua realidade”.
“Faz algum tempo, os jornais noticiaram que uma mulher seria apedrejada até a morte, no Irã, por ter cometido adultério. Então vários países foram contra, pois era uma VIDA que estava em jogo. Passado pouco tempo, os jornais noticiaram que nos Estados Unidos um homem condenado à pena de morte foi executado, uma injeção retirou a VIDA dele. Um ser humano tira a VIDA de outro ser humano, isso com o consentimento de todos. Não vi nenhuma manifestação contra a execução”.
“A questão não é se o ser humano que foi condenado é bom ou ruim, mas a discussão é sobre a VIDA. De acordo com slogan de vocês: SALVE UMA VIDA. No exemplo citado, uma vida foi tirada aos olhos do mundo inteiro. Analisemos o caso. O homem estava há anos confinado em celas do presídio. Não tinha liberdade! Isso é vida? Ele estava sozinho na cela, igual a um passarinho engaiolado. Sem sua família. Ele é um ser humano, foi gerado pelo pai e mãe, nasceu de uma mulher. Isso é vida? Talvez ele tinha uma esposa e até um filho. Mas não podia compartilhar com seus familiares. Isso é vida?”
“Para mim, que sou uma mulher indígena Waikhon, a Vida vai além do corpo físico, além dos órgãos vitais, além do espiritual, além do mundo que nos rodeia. Tudo tem vida: o ar que eu respiro, o sol que me aquece, o alimento que eu como, o rio, a mata... Mas isso é difícil para os não índios entenderem, porque vejo que estão matando a vida, por exemplo, os rios em suas cidades, vocês despejam lixo nele, tentam recuperar, mas os esgotos são canalizados para os rios e igarapés”.
“Os rios e igarapés estão chorando, estão desidratados, estão quase morrendo. Eles não são seres humanos, mas têm vida. Nós, índios e não-índios, precisamos deles, porque sem água o ser humano não vive. Ele morre. Estão vendo como uma coisa está interligada à outra?”
“Com relação ao exemplo citado do homem condenado à morte, não tiraram só uma vida dele, tiraram várias, a vida final foi a dos órgãos vitais e a do corpo físico. Estão vendo como é complicado?”
“Muito tempo atrás, os ‘civilizados’ também começaram a tirar nossas vidas. Invadiram nossas aldeias. Queimaram nossas casas. Tomaram nossas terras. Estupraram nossas mulheres. Mataram nossas crianças. Travaram brigas de índio contra índio. Escravizaram nosso povo, nos chamando de atrasados, que impediam o progresso do Brasil. Hoje, muitos são executados por causa da posse da terra. Os não-índios ricos e poderosos colocam índio contra índio, nos dividem para poder tomar posse de nossas terras”.
“Quando se trata de questão indígena, não se pode cuidar só do pé ou da mão. Nossos membros estão interligados. É preciso aprofundar o estudo sobre nossas culturas para não causar, mesmo inconscientemente, o racismo e a xenofobia na sociedade que ainda não consegue compreender os povos indígenas e as diferentes formas de sobreviver num mundo tão complicado”.
“Quero dizer aos senhores que antigamente o povo a qual pertenço praticava o que vocês chamam de infanticídio e não era infanticídio, nem indígena, pois na época não tinham nos apelidado ainda de índio. Como seria intitulado nos dias atuais, se os exploradores de nossas terras, muitas delas tomadas pelos latifundiários, que nos chamam de preguiçosos, não tivessem nos apelidado? Seria infanticídio waikhon, kamaiurá, kayabi?”
“Atualmente nós não temos mais essa prática, pois os gêmeos, trigêmeos e deficientes continuam vivos, são acolhidos muito bem, também existem não-índios solidários que ajudam cuidando dessas crianças, mas elas NÃO SÃO RETIRADAS DE SUA FAMÍLIA NEM DE SUAS ALDEIAS. Na Terra Indigena onde habito somos mais de 20 povos indígenas, entre eles tem também os Yanomami. Recentemente, nasceram trigêmeos Yanomami, a equipe de saúde ficou temerosa, porque lá ainda existe essa prática”.
“Diante disso, houve um DIÁLOGO entre a equipe de saúde, as lideranças indígenas, a família e o povo Yanomami. Sabe o que aconteceu? Depois de logos dias de diálogo, os pais ficaram com dois, os avós maternos ficaram com o terceiro. As crianças não foram retiradas do seu seio familiar, de seu povo, de suas terras, como vocês fazem. Tudo é questão do diálogo, respeito, entendimento, pois os povos indígenas, apesar das diferenças, têm inteligência e capacidade de chegar a um acordo”.
“Já que a Ong Atini está tratando do público indígena, respeito o modo de pensar de vocês. Mas quero lhe dizer que uma vez um indígena afastado de seu povo, de seu habitat, de suas terras, essas famílias e crianças não deixarão de ser índios (as), mas nunca mais serão os mesmos. Pois terão que seguir as violentas regras da civilização e do capitalismo para sobreviverem, como mão de obra barata da sociedade integracionista”.
“O que me entristece é o termo “infanticídio indígena”, era melhor vocês estudarem outro termo, porque esse atual afeta todos nós. Na atualidade, estamos tratando do assunto de forma diferente da de vocês e não ficamos pedindo dinheiro para montar uma aldeia na cidade. A Ong de vocês tem um habitat que se assemelha a uma aldeia conforme o entendimento de cada povo indígena? Porque pelo que vi lá tem pessoas de povos diferentes, tem Kamaiurá, Kayabi, Sateré-Mawé... Ou é tudo feito ao molde de vocês?”
“Cada povo indígena tem sua estrutura social, econômica, política, cultural, seu idioma, sua religião, sua alimentação...Isso aqueles que não sofreram a desestruturação do Estado brasileiro integracionista e a lavagem cerebral dos missionários que cuidam apenas da alma dos índios. Cada povo indígena sofreu a integração e a intromissão do não-índio de forma diferenciada e na atualidade tentaram de alguma forma se reorganizar e sobreviver. Vocês levam isso em conta? De que maneira?”
“Senhores, sou uma índia em busca de resposta e tentando sobreviver no mundo não-indígena. Penso que o diálogo é importante. Após a matéria de sua Ong veiculada na rede Record, sofri momentos terríveis. Sabe como os civilizados falaram na minha cara? /“Ei, índia, você não é gente, índio mata o próprio filho, vocês deviam morrer/”. Foi mais de uma pessoa, foi por isso que resolvi escrever.Meu dia virou um terror, em todos esses anos, nunca tinha ouvido palavras tão pesadas e racistas”.
“Se vocês estivessem no meu lugar o que fariam? Registrar na delegacia? Mas como se num centro urbano desorganizado são tantas pessoas e não há polícias à disposição para tomar providências! Como pegar o nome dessas pessoas? Complicado pra quem não tem habilidade de cidade grande”.
“Fiquei muito triste por tudo. Não culpo essas pessoas, porque elas simplesmente são influenciadas pela ignorância, mal devem ter uma TV em casa, muitas vezes não têm nem o que comer, muito menos irão se aprofundar sobre o assunto. São filhas do sistema opressor da ganância, do egoísmo e do individualismo. Se aconteceu comigo, pode ter acontecido com outros”.
“Desculpem se estou ofendendo vocês, mas a cada dia que eu for ofendida por conta desse assunto, escreverei cartas, pois a escrita é a única ferramenta do não-índio que possuo. Só estou escrevendo, porque fui atingida como indígena. Não falo em nome dos povos indígenas do Brasil, porque compreendo as peculiaridades diversas e respeito a maneira de pensar dos outros parentes. Já temos problemas demais para ter que enfrentar no mundo atual. Todo cuidado é pouco para não travar brigas de índios contra índios. É isso que a Ong não consegue compreender”.

José Ribamar Bessa Freire é escritor e jornailsta.

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