Nas ruas charmosas da zona Sul, o lamento pela ausência de banho de sangue
Maurício Dias na Carta Capital
O Rio de Janeiro suspirou aliviado com a tomada do Complexo do Alemão. Caiu uma área onde o poder marginal, incólume, usava e abusava há muitos anos. O resultado produziu efeito de igual importância. Serviu de exemplo para jovens dessas comunidades que, movidos pela ilusão de poder e dinheiro, consideram como opção de vida o ingresso na marginalidade como alternativa para eles.
O alívio de alguns, porém, foi decepção para muitos. Por vezes, podia-se ouvir nas ruas mais charmosas da zona sul da capital o desapontamento projetado em expressões como esta: “Deviam ‘passar o cerol’ naqueles filhos da puta. A TV Globo atrapalhou”.
No momento em que o bando de traficantes armados se dispersou em fuga do Morro do Cruzeiro para o Morro do Alemão seria possível produzir o massacre desejado, executado por policiais nos helicópteros ou por atiradores oficiais escondidos na mata. Tiros foram disparados, como se ouviu, e, como se viu pela Globo, dois ou três traficantes foram atingidos. Tudo sugere que a audiência determinou o cessar fogo.
Embora a emoção tenha sido contida pelas autoridades, a população levada ao desespero por longos anos de omissão do poder público legitimaria a insensatez. Da correspondência recebida, selecionei trechos do e-mail do leitor E.L.S., morador no bairro da Penha, zona norte, centro do episódio:
“… Comecei a ver uma luz no fim do túnel dessa violência, e por mais que venham a morrer pessoas que nada têm a ver com isso, já morríamos todos os dias por não poder sair de casa sem saber se voltaríamos”.
A gíria “passar o cerol”, repetida na zona sul, vai muito além da angústia compreensível entre os moradores da zona norte. Retiro do jornal O Globo palavras de José Junior, do grupo AfroReggae, que se dispôs a intermediar a rendição dos traficantes: “Cheguei a ouvir policial dizer que se sentiu como atleta que vai para a Olimpíada e não disputa, só porque não houve banho de sangue”.
A frase, contagiada pelo sotaque policial, foi repetida pelo delegado Rodrigo Oliveira, coordenador das ações da Polícia Civil: “Esses bandidos não passam de frouxos. Fugiram como ratos”.
Uns fugiram. Alguns se renderam e outros morreram. Felizmente, não jorrou tanto sangue como poderia ter jorrado. Mas a Constituição foi sangrada. Sangrou, emblematicamente, do corpo de um paraquedista ferido. Ele cumpria ordens, mas estava lá irregularmente. O combate ao crime não pode ser transformado em confronto entre um grupo marginal e um poder público que, igualmente, se marginaliza para reprimir.
Em 2007, simpósio organizado pelo Centro de Estudos Estratégicos do Exército concluiu: “O emprego das FA na preservação da ordem pública é medida somente recomendável quando houver decretação do estado de defesa, do estado de sítio ou da intervenção federal. Qualquer outro arranjo implica riscos ao Estado de Direito”.
Admitir em silêncio o que ocorreu pode estimular o mesmo Exército a agir, amanhã, contra o poder constitucionalmente estabelecido. Foi assim em 1964. Derrubaram o presidente em nome de suposto clamor público.
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