André Mendes, Fernando Rosenbaum e Jorge Brand em performance perto do MON: cicloativistas se divertem, mas confessam temer a agressividade dos motoristas
Em Curitiba, jovens ciclistas admitem ter sofrido agressões e denunciam a intimidação a que estão expostos
Violeta tem 3 anos, Sara, 2 e Sofia, 1,5. A pouquíssima idade não impede que já tenham experimentado as delícias do ciclismo – misto de transporte, lazer e esporte que fascina milhões desde meados do século 19. O artista plástico Fernando Rosenbaum, 32 anos, pai de Violeta e padrinho de Sara; e o filósofo e iogue Jorge Brand, 31, conhecido como Goura, pai de Sofia, mal lembram quando se iniciaram na prática das duas rodas, foi tão cedo. E se ocuparam de fazer o mesmo por seus rebentos: incluíram uma cadeirinha de bebê na parte traseira de suas bikes.
Não estão sozinhos. O designer André Mendes, 31, conta os dias para fazer uma infanto-bicicletada com Fernando e Jorge, levando a reboque sua Celeste, hoje com 7 meses. As pequenas estarão em segurança. Nenhum dos três marmanjos circula menos de dez quilômetros por dia de bicicleta. E todos são cicloativistas ligados ao Interlux – coletivo que há quase uma década se notabiliza como um dos raros movimentos nascidos da classe média local.
Exposição
Solar das bikes
A partir da próxima terça-feira, os grupos ocupados com a arte e a política da bicicleta ocupam o Solar do Barão (Rua Carlos Cavalcanti, 533), no Centro de Curitiba, com a mostra Mob. Como de praxe, que não se espere atestado de bom comportamento. A programação inclui uma exposição – no melhor da estética bike –, mas também debates, performances e lançamentos de livros.
Um dos destaques é o trabalho da designer Michele Micheletto, que lança no arrastão do Interlux e companhia um “guia defensivo para ciclistas”. “É um fanzine que ensina a gente a se defender”, diz a autora. Michele também encabeça a intervenção “bicicletas brancas”: bikes avariadas são arrumadas, pintadas de branco e coletivizadas. Para usá-las, basta mandar e-mail parabicicletabranca@gmail.com.
O evento encerra em 22 de maio com a fundação da Associação de Ciclistas de Curitiba e região metropolitana. Por vias oficiais, cicloativistas vão monitorar políticas públicas e contabilizar acidentes com ciclistas, entre outras atividades. (JCF)
De 1 a 5
Confira as principais dúvidas sobre o mundo bike e o “estágio evolutivo” de cada questão:
Quantos ciclistas?
GRAU 1. Em pesquisa do final da década de 1990, o Ippuc arriscou resposta. Chegou à conclusão que 1% da população da capital usava os 100 quilômetros de ciclovias nos fins de semana – algo como 18 mil pessoas. Nos dias úteis o número baixava para 15 mil usuários. Àquela época, a capital concentrava quase 50% da malha cicloviária do Brasil. A conclusão é óbvia: o curitibano prestigia pouco esse equipamento urbano.
Quem são eles?
GRAU 3. Levantamento feito pelo Ippuc em 2008 deu pistas sobre o perfil dos ciclistas de Curitiba. Foram entrevistados 2.825 bikers, em diferentes regiões da cidade. O resultado impressiona: 86% dos consultados utilizam a bicicleta para ir ao trabalho e 77% a utilizam todos os dias. Cerca de 26% dos entrevistados são da região metropolitana. Dados indicam uso das duas rodas pela população de baixa renda.
Quantos feridos?
GRAU 3. A preocupação com acidentes de trânsito envolvendo ciclistas é recente e os dados disponíveis ainda são frágeis. Com exceção do Hospital do Trabalhador (HT), os outros centros médicos que atendem traumas classificam os ciclistas feridos na categoria “queda”. Ano passado, 1.684 ciclistas deram entrada no pronto-socorro do HT. Desses, apenas 178 precisaram de internamento – cerca de 10%.
Quantos mortos?
GRAU 2. Em 2009, na capital, 27 ciclistas morreram em colisões. Ano passado, esse número baixou para 17 óbitos. Informações do Siate/Samu mostram que 85% dos mortos são homens – também eles a maioria dos ciclistas –, acima dos 40 anos. Não há informações seguras, mas tudo indica que nessa faixa etária as vítimas tenham sido trabalhadores.
No Paraná
GRAU 2. Em 2009, o Detran registrou 3.032 acidentes envolvendo ciclistas em todo o Paraná. Desses, 79 morreram. Ano passado, o número de colisões diminuiu – foram 2.844, mas o número de mortos aumentou: 106 óbitos. O órgão estadual considera o levantamento de dados não conclusivo, pois depende de informações de diversas praças.
Regras básicas
Saiba o que fazer ao pedalar pela cidade:
Você pode
- Andar em qualquer rua da cidade – conforme prevê o Código de Trânsito Brasileiro.
- Esticar um dos braços, lembrando aos motoristas a distância segura para ultrapassagem de bicicleta.
Você deve
- Circular no mesmo sentido que os outros veículos.
- Andar sempre pelo lado direito.
- Usar equipamentos seguros, como buzinas e lanternas.
- Pedir passagem com o aceno dos braços.
- Pedir que sua empresa, escola e ao poder público que providencie lugares para deixar a bicicleta, o paraciclo.
Você não pode
- Usar a canaleta de ônibus.
Mas pai é pai, mesmo os que se enquadram na categoria “distraídos venceremos”, como os mosqueteiros se definem. Continue o trânsito como está, nem André, nem Jorge, nem Fernando deixarão suas meninas, crescidas, circularem sozinhas por Curitiba. Têm motivos. Numa roda de conversa com a reportagem, os cicloativistas narraram sua rotina de “fechadas” de ônibus, insultos, quedas no meio-fio. Tão ruim quanto é o silêncio das autoridades – a cada queixa prestada – e do poder público, que na opinião deles têm respondido com lentidão à urgência mundial de transportes menos poluentes.
“Tudo o que conseguimos até agora foi implantar paraciclos no Museu Oscar Niemeyer”, ironiza Fernando, sobre o porta-bicicletas do MON, saldo modesto em meio às 1.001 atividades empreendidas pela centena de ciclistas da Bicicletada – passeio urbano que sai da Reitoria todo último sábado do mês –, e pela turma da Galeria Lúdica, dois grupos que se aliaram ao Interlux.
O fastio dos ativistas faz sentido: nada dá a entender que os ciclistas são bem-vindos em Curitiba. Tem-se aqui a maior taxa de motorização do país e 60% das ciclovias compartilhadas com calçadas. Quem pedala sabe o que isso significa. Sem falar na hostilidade. Informações recolhidas junto à Diretoria de Trânsito (Diretran) confirmam a gritaria geral a cada vez que ruas são fechadas para garantir as bicicletadas. “Na rua, sempre me sinto atrapalhando”, lamenta Brand.
Ainda não aconteceu por aqui nenhuma agressão parecida à de Porto Alegre – quando, no final de fevereiro, o funcionário público Ricardo Neis feriu 16 ciclistas que participavam de um passeio promovido pelo grupo Massa Crítica. Mas a contar pelo que passam os bikers, bem poderia. “Já tive de colocar a bicicleta na frente de um ônibus e bater boca com o motorista que me atirou na calçada. O tempo todo rola pressão”, conta Jorge, dando início a uma fieira de histórias bastante parecidas.
“Com as mulheres é bem pior”, emenda Rosenbaum. Não há dados oficiais, mas os ciclistas estimam que para cada dez bikers, apenas três sejam do sexo feminino. Recém-chegada ao grupo, a designer Michele Micheletto, 29, confirma. “Dá medo. Uma amiga foi assaltada na ciclovia enquanto esperava o trem passar...” Um e outro concordam, com pena de dizer: quem sai à rua de bicicleta está correndo o perigo.
As estatísticas
De acordo com o Código Brasileiro de Trânsito, os ciclistas têm tanto direito à rua quanto os condutores de automóveis. Mas parece grego. As estatísticas oficiais, por sua vez, reproduzem o descaso geral com essa informação. Dos três hospitais especializados em trauma na capital, apenas o Hospital do Trabalhador discrimina acidente de bicicleta, o que faz com que os atingidos por automóveis sejam confundidos com quem caiu da escada ou tropeçou no quintal de casa.
Ciclo vicioso. A ausência de metodologia nos registros acaba refletindo nos índices do Detran, Diretran, Secretaria Municipal de Saúde, que vêm sempre seguidos de um alerta: não são dados seguros. Pudera. Parte considerável dos acidentes não é informada corretamente, o que levará a não se tornar política pública, perpetuando a inibição de futuros ciclistas.
É fato que alguns cuidados com a turma das duas rodas ainda pulsa. É exemplar a pesquisa capitaneada por Vera Lídia de Oliveira e Cristine Sobreira junto à Secretaria Municipal de Saúde, esmiuçando cada detalhe das tragédias de trânsito. Esses mapas apontam, inclusive, diminuição do número de óbitos de ciclistas em 2010: foram 17, contra 27 em 2009.
Mas é cedo para festejar. Nos dois primeiros meses deste ano cresceu para 30% o número de bikers internados no Hospital do Trabalhador, três vezes mais do que a média do ano passado. “O ciclista é tão frágil quanto o pedestre”, admite a engenheira Rosângela Battistella, diretora de Trânsito da Urbs.
A diretora – conhecida por ser um dos poucos expoentes da prefeitura a usar transporte público – discorda que haja morosidade em implantar políticas cicloviárias. Ela cita ciclofaixas em projetos como o da Marechal Floriano e da Toaldo Túlio. E admite a solidão da Urbs na hora de aplicar novos modais. Universidades e empresas resistem a parcerias, ajudando a fazer vencer a tirania dos automóveis. “Curitibano é louco por carro. É uma questão cultural”, diz, repetindo a única frase em comum entre cicloativistas e “monstristas”, como se diz.
Projetos
Uma das propostas de Rosângela é implantar “ruas de convivência” – vias que seriam fechadas nos fins de semana para servir os ciclistas. O próximo passo seria ampliar a “cota de ruas” para os dias de semana, criando a tal da cultura ciclística. “A gente trabalha para ligar bairros por ciclovias. E estamos conseguindo. Mas até pouco tempo tínhamos um governo que motivava cada brasileiro a ter um carro”, critica a arquiteta Maria Miranda, uma das coordenadoras do programa de Mobilidade do Ippuc.
É assunto para uma mesa redonda, seguida de réplicas, tréplicas e desaforos. Uma das marcas do movimento de ciclistas em Curitiba é ser tão criativo quanto politizado. Não há assopro para autoridades recentes, cujo favorecimento ao carro é considerado predatório. “Cansamos de levar tapinhas nas costas. Na hora de estacionar a gente continua tendo de procurar a árvore e o poste. Ciclista é marginal”, alfineta Rosenbaum.
Convite
Via de regra, os cicloativistas convidam o governador Beto Richa e o prefeito Luciano Ducci a andarem de bike por aí, enfrentando a falta de sinalização e de guias rebaixadas – verdadeiro atentado aos fundilhos. Mas pode ser mais lúdico, como passear com Jorge/Goura a bordo do uma rickshaw – aquela liteira acoplada a uma bicicleta usada na Índia.
A mãe de Jorge, a médica Margarida, e sua tia, a arquiteta Teresa, fizeram a experiência. Segundo o guia, foi um reencontro com um prazer ciclístico da infância, que a maioria teve e esqueceu. As fábricas de bicicleta, a propósito, não têm do que reclamar. Bicicleta é presente obrigatório – mas para lazer. Há quem tenha se lembrado daqueles tempos e mudado de lado. É boa notícia.
Embora o trio se sinta meio frustrado com os resultados da militância, hoje é possível traçar um mapa de quem aderiu à cultura bike em Curitiba. Bares e restaurantes como a Cantina do Délio, Cafezal, Supervegetariano e Beto Batata providenciam estacionamentos e incentivam as duas rodas. Se escolas, empresas e órgãos públicos seguirem atrás, arrisca que Violeta, Sara, Sofia e Celeste, daqui um tempo, possam pedalar por aí, dando continuidade à crença de que essa cidade é diferente.
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