*Lígia Bahia
Volta e meia somos notificados sobre a ocorrência de casos suspeitos de falhas na segurança e na qualidade das ações de instituições de saúde. A troca de soro por vaselina, queimadura da perna de um bebê por bisturi elétrico, morte de mães por demora no diagnóstico e tratamento de complicações no parto e a solerte epidemia de perdas de vidas em cirurgias de lipoaspiração são a ponta do iceberg.
Os danos causados pelos problemas da assistência, e não pela impossibilidade de acesso, acometem ricos e pobres. As providências para averiguá-los caracterizam-se por serem ex-post e pontuais. As denúncias, quando constatadas por inquéritos iniciados na polícia e por entidades profissionais, geram punições e indenizações também individualizadas. Quando um novo episódio vem à superfície, recorre-se ao mesmo ramerrão. Ou se culpará o auxiliar de enfermagem ou as artimanhas do destino.
Se nessas dramáticas crônicas nada houvesse de constante e contínuo estaria tudo muito bem. Mas, infelizmente não é verdade. Complicações de cirurgias, infecções hospitalares e efeitos adversos de medicamentos acontecem com muita freqüência e podem ser evitados. Em 1990, determinados problemas ocasionados pelo contato com os serviços de saúde representaram a quinta causa de mortalidade nos EUA.
O reconhecimento da iatrogenia e das possibilidades de controlá-la inspiraram a criação de instituições especializadas no aprimoramento da qualidade e segurança em diversos países. No meio desse caminho, preconceitos foram superados. O primeiro deles é a noção de que a qualidade varia na proporção exata do grau de personalismo envolvido na relação entre médicos, enfermeiros, outros profissionais e pacientes. O segundo, a rigor um desdobramento da idéia de qualidade como oposta à padronização, refere-se às fronteiras entre confidencialidade e transparência das atividades.
Costuma-se valorizar a cordialidade, presteza e limpeza, aspectos plenamente compreensíveis por quem é atendido. No entanto, os complexos processos de decisão, requerentes de conhecimento sobre alternativas para o diagnóstico e tratamento escapam ao domínio dos leigos. A teconologia e os aspectos técnicos do cuidado intimidam.
Como avaliar se as melhores e mais seguras estratégias foram estritamente observadas na ausência de normas, condutas e rotinas e difusão ampla de informações sobre a variação de resultados assistenciais?
No Brasil, a qualidade tornou-se quase antônimo de eficiência e ainda não conseguimos persuadir dirigentes, sobrecarregados com o fardo de gastar bem, lucrar mais ou ganhar votos, a renunciar ao pensamento e às práticas binárias. Segue-se daí não termos até hoje uma política nacional de qualidade e segurança da atenção à saúde.
Nosso sistema de saúde, estratificado, ineficiente e com baixo desempenho seria sacudido pelos ventos da transparência e energia de equipes profissionais capacitadas para liderar a melhoria da qualidade. Para isso temos recursos. Falta um projeto ambicioso para tracionar a retirada da saúde do atolamento da priorização de ações fragmentadas. Se cada presidente, governador ou prefeito escolher doenças para cuidar in pectore e especialmente se os agravos contemplados forem aqueles que os acometeram ou adoentaram seus parentes, como fez Rodrigues Alves com a febre amarela, levaremos muitos séculos para acertar nossos passos com as inúmeras afecções compiladas na Classificação Internacional de Doenças.
Instituições mantenedoras de balcões de negócios e cartórios para a transação de contratos vazados por interesses particulares e corrupção manifestam aversão à avaliação de qualidade e coadunam-se, propositalmente ou não, com o menosprezo do potencial inovador de um sistema de saúde coordenado. Por isso, a tentativa de produzir um efeito-demonstração com a redução do câncer de mama, justaposta às declarações de perplexidade com a má distribuição de mamógrafos, parece tender à repetição. As campanhas para o controle de câncer do colo do útero acumulam avanços, mas também um passivo razoável de problemas, inclusive relacionados com qualidade dos exames.
Quais recursos para a saúde estão desconcentrados? Seria fortuita a procura pelas altas autoridades públicas, independente de onde morem, de atenção médica em um, no máximo dois, hospitais da capital paulista? Mais promissora é a noticia de que daremos um pulo deste para outro SUS. Como ponto de partida para o impulso sugere-se: oferecer um megafone para os brasileiros relatarem suas experiências e usar à vontade o repositório de energia e dedicação dos profissionais que pretendem trabalhar com dignidade.
Buscar um antídoto para males tão explicitamente articulados com grandes coalizões político-econômicas, destituído dos ingredientes do ajuste de risco, via pagamento por performance, parecerá simplório e ingênuo. Não é mesmo nada fácil encontrar apoios para saltar por cima do status quo. O argumento para girar a política de saúde em prol das necessidades dos cidadãos não é a certeza do sucesso. O que já foi demonstrado é a insustentabilidade de teses caras para o time dos espertos. Asuposta atração dos médicos por um dinheirinho a mais em troca de maior subserviência às empresas de planos e seguros de saúde não deterá a greve.
Há mais coisas, entre as quais uma generosa vontade de mudança.
Lígia Bahia, vice-presidente da ABRASCO e professora de economia da saúde no Instituto de Estudos em Saúde Coletiva da Universidade Federal do Rio de Janeiro
(IESC/UFRJ). Artigo publicado no Jornal O Globo, em 04/04/2011.
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