– 09/05/2011
POSTADO EM: FELIPE CAVALCANTI, RICARDO CECCIM, Z
Ricardo Ceccim e Felipe Cavalcanti apresentam um outro ponto de vista sobre o Rede Cegonha
por Ricardo Burg Ceccim (professor associado na UFRGS/coordenador do EducaSaúde) e Felipe Cavalcanti (médico sanitarista, doutorando do IMS/UERJ e sub-editor do blog Saúde com Dilma)
Desde o lançamento da Rede Cegonha pela presidente do Brasil, Dilma Rousseff, ouvimos certa contrariedade de militantes do feminismo brasileiro à designação do programa a ser implementado pelo Ministério da Saúde, relativo à segurança de saúde no nascimento de bebês ou à intercedência política pelo nascimento seguro em maternidades, mediante a oferta de acompanhamento profissional e humanizado de pré-natal, parto e puerpério, como uma garantia dirigida às mulheres. O programa se refere a um direito básico, o direito à vida no que tange ao nascimento seguro em nosso país, especialmente naquilo em que o sistema de saúde tem poder de intervenção. Este poder toca na chamadarelevância pública da área da saúde, como prescreve a Constituição Federal, o que obriga o setor da saúde à formulação de estratégias não apenas assistenciais ou curativas, mas de impacto sobre os determinantes de proteção da saúde. Desafio inusitado ao setor da saúde no que se refere à voz dos/das dirigentes maiores nas esferas de governo, onde saúde, no mais das vezes, é a assistência ou o puro discurso.
Os indicadores de morbimortalidade relativos ao nascimento e ao parto seguem um roteiro de alerta sanitário em qualquer país do mundo e, uma vez que desdobramento de um evento fisiológico relativo à existência humana sobre a Terra, não poderiam, jamais, serem desobservados. Pela primeira vez, entretanto, talvez por termos uma mulher na presidência da República, verifica-se que o nascimento, no Brasil, assumiu características cidadãs, superando a simples noção de intervenção sobre indicadores bioestatísticos: de “bioestatística” para uma “política pública, com a implicação do setor da saúde”. Não se trata da maternidade como política social, mas do envolvimento do setor da saúde com a proteção das mulheres na maternidade.
Como uma política sanitária, o programa terá de inscrever um conjunto de fatores relativos à atenção integral à saúde das mulheres e das crianças, como aqueles relativos aos eventuais segmentos de pertencimento dessas mulheres e crianças, como a raça, a geração e as necessidades especiais de proteção e cuidado, mas surge com a Rede Cegonha uma espécie de “parto cidadão”, um direito básico de cidadania como o de nascer de maneira segura em um país que não pode mais, em hipótese alguma, relegar à mulher, por ser a gestante dos nascimentos, a tarefa – individualizadora e por culpabilização – de parir em condições e ambientes protegidos. Tampouco de enfocar “as mães”.
O Estado deve, agora, assegurar às mulheres esse acesso, em uma ação não individualizante e não culpabilizadora. Não porque se propôs ou se fez uma lei, mas porque se instruiu, de novo modo, essa tarefa básica ao setor da saúde. Como lei, já estava na Constituição Federal ou no Estatuto da Criança e do Adolescente. Como política de saúde, já estava no pacto de redução da mortalidade materna e neonatal. Algo mudou!
A noção de uma díade mãe-bebê historicamente invisibiliza a mulher, produzindo a identidade materna sobre a identidade da mulher. Também nega a criança, submetendo-a à continuidade da mãe, esta como “a” protagonista obrigatória da sua sobrevivência. Era preciso dizer de um momento onde estão presentes mulheres e crianças, não reduzidas à bioestatística e nem a uma fusão biológica individualizadora e culpabilizadora, tampouco lembradas em uma lei formal ou de tradução moral.
A situação da atenção ao pré-natal e, sobretudo, ao parto, no Brasil, não é das mais fáceis, requerendo uma ação urgente que não deveria (e não pode) esperar. Basta lembrar que o nascimento foi pauta e tema intensivo da campanha presidencial, desafio ao entendimento da sociedade sobre quem seria o melhor candidato/a melhor candidata à presidência da República.
Do combate ao aborto às exposições das mulheres à violência por questões de gênero, havia e há que se dar a devida visibilidade a cada circunstância, sob pena de generalizarmos situações biológicas como sociais, invertendo a anterior generalização de situações sociais como biológicas. A necessidade do aborto e a exposição sofrida no momento do parto, seja pela falta de acesso ao cuidado profissional seja por maus-tratos institucionais, exigiam medidas contundentes. Como admitir o aborto sem assegurar condições indiscutíveis de acesso à maternidade? Como proteger a mulher em um evento fisiológico, onde ela está submetida aos (pré)conceitos morais e legais da sobrevida da espécie, justamente em um momento de abalo em sua estrutura física e subjetiva (com a experiência de aflição) representada pelo parto, sem indicar-lhe o alívio de uma rede de proteção pública, independente de valores, crenças e hábitos? O parto não pode pertencer apenas à mulher, ela não pode sofrer e nem entrar em aflição pela falta de políticas públicas que lhe reconheçam o direito de um parto seguro, esteja onde estiver. O país tem de oferecer serviços profissionais de auxílio ao parto, garantias de acesso às maternidades profissionais e garantia de proteção e auxílio ao pós-parto e puerpério. O puerpério contém necessidades de saúde relativas aos bebês e às mães, necessidades que são distintas entre os dois e se configuram no espectro de saúde da criança e de saúde da mulher. A ausência ou fragilidade nas redes de proteção à criança menor de dois anos têm colocado a mulher como a responsável preponderante da sobrevida e qualidade de vida de recém-nascidos e bebês. Ainda uma condição de vulnerabilidade se impõe às mulheres ao subsumi-las na condição “naturalmente” materna.
Concordemos ou não com o conteúdo de “anúncios” em programas sociais ou nas políticas públicas de saúde, resta óbvio que a saúde parece agora representar outro tipo de prioridade no governo, inclusive uma prioridade degoverno. Nossa tradição de movimento social manda gritar, acusar, apontar problemas e desvendar as “reais intenções”. É legítima a grita de militantes do feminismo, devendo ser acolhida e interpretada pelo setor da saúde.
Nossa reflexão: será que a Rede Cegonha depõe um olhar preconceituoso às mulheres? Dilma, feminista, lutadora pelos direitos à liberdade e das mulheres, será que quereria negar às mulheres a perspectiva da integralidade e a perspectiva de gênero, reduzindo as mulheres à maternidade e ainda sugerindo na maternidade um evento cultural higienista? Parto sem sexo, sem genitalidade e sem feminilidades? Temos forte dificuldade em concordar com isso.
Por outro lado, percebemos uma acusação: Dilma foi mal assessorada e os gestores do Ministério da Saúde não apresentaram a ela a luta histórica de construção de uma Política de Atenção Integral à Saúde da Mulher, assim como toda a discussão do setor sobre “integralidade do cuidado” e “gênero e saúde”. Talvez sim, talvez não, mas que impacto uma mulher no governo tem de dar? Com quem tem que conversar? Como brandir nos diversos imaginários sociais de nosso país que nenhuma mulher brasileira poderá ser exposta, no seu governo e pela sua produção de imaginários, nunca mais, à desassistência ou à violência na maternidade e na hora do parto. Germes pregnantes do ser mulher, gestação e parto não resumem a mulher, mas nunca mais gestação e parto serão descontextualizados e a mulher culpabilizada! Eis a nova instrução!
Se devem engravidar e parir, que o Estado apoie às mulheres. Por meio da saúde, de maneira ética, responsável e qualificada! Não se trata – gestação e parto – de imposição biológica e nem moral: é preciso brandir! A gestação ocorre em contextos, não cabendo ao Estado julgar, mas devendo assegurar, às mulheres, cuidados de saúde. O Estado não pode impor-se ao corpo da mulher, como nos imaginários e práticas anti-aborto. Deve apoiá-la, assegurar-lhe redes de proteção a que possa recorrer (singularizadas por suas necessidades, é de se esperar).
Os sanitaristas, é provável, terão sugerido à Dilma a mudança do nome de seu Programa Rede Cegonha, para Rede Materno-Infantil, Rede Mãe-Bebê, Rede Nascer Saudável, sabe-se lá. A resposta provável da presidenta, posto que designação sua, lançada em sua assertividade de comunicação na campanha eleitoral: “falem a verdade, o nome que formulei é ou não é muito bom?!” Temos motivo para discordar? Uma designação forte, com forte conexão social, com visibilidade para qualquer dos atores sociais que ela está convocando a atuar: instituições de saúde e instituições sociais, profissionais de saúde, de portaria, de táxi ou de ônibus. Convocados todos a compor uma rede que assegure a cada mulher, na maternidade ou na hora do parto, que tenha acesso e transporte ao pré-natal, parto e puerpério assistidos, que existam as maternidades e que o atendimento em maternidades ou no acesso a elas seja acolhedor, respeitoso, confortável e altamente qualificado. Que o atendimento de saúde no nascimento não se inicie e termine como proteção do parto, mas proteção da mulher. Cuidados “maternos”, mas à mulher, não à mãe. Discurso esquisito?
Ao invés de uma interpretação onde a Rede Cegonha se oporia ou substituiria a tematização e as diretrizes da Política de Atenção Integral à Saúde da Mulher ou, então, de que elidira as feminilidades na gravidez e no parto, um outro efeito à designação assertiva: o de despertar redes de diálogo e o de fazer reverberar as práticas discursivas, em especial na disputa pelo entendimento das políticas de saúde. Uma ação contundente, não por discursividades politicamente corretas, até mesmo outra disposição do discurso. Uma ação não moral, com estratégias envolventes da sociedade. A presidenta fala em atendimento pré-natal, parto e puerpério, em recém-nascidos e crianças, em creches e escolas. Sua noção é amplamente feminina.
Em lugar, também, de uma “boa designação técnica” para as “boas intenções sanitárias”, o desafio de encarar e assumir a determinação social exercida pelo próprio setor da saúde: coordenar a Rede Cegonha! É que essa rede exigirá ações e serviços acolhedores e capazes de apoiar e fortalecer a autonomia das mulheres e das crianças, fazendo rever arranjos familiares e das coletividades onde a vida social se organiza, colocando em diálogo o cotidiano de mulheres, crianças e homens, inclusive os contextos familiares onde nascimentos acercam-se de “problemas de saúde pública”.
A Rede Cegonha faz rede por dentro do setor da saúde e deste com os vários setores de políticas públicas, destas com as práticas sociais e com as redes socioculturais, inscreve profissionais de saúde e a sociedade. Na lenda, a Cegonha traz os recém-nascidos, resultado dos costumes de ave migradora que retorna no desabrochar da primavera (migra e, quando retorna, traz a vida nova). A imagem é a do transporte, não a do engravidar e parir. Cabe à mulher a gestação (pretende-se que por sua escolha), mas cabe à sociedade uma rede Cegonha. A mulher já vem provendo a nidação, da concepção ao parto, já a todos os demais – e em especial ao setor da saúde – precisa competir assegurar-lhe condições qualificadas de trazer o bebê à luz, que seja a Cegonha disponível às mulheres e lhes dê semelhante conforto, como nos contos da cultura popular onde o nascimento é sempre seguro e as grávidas sempre se sentem acolhidas. O mais difícil será ser um certo tipo de Cegonha:ser com as mulheres, medir-se pelas mulheres.
Uma lenda dirigida às crianças bem pequenas, não se ilude as mulheres grávidas de que os bebês lhes serão trazidos por cegonhas. Levada adiante a gravidez, são elas que vão parir. Então, uma rede Cegonha estará dirigida a elas, segundo suas necessidades, segundo suas avaliações de correspondência, ou não, às suas necessidades.
Um eventual programa pactuado “de enfrentamento” da mortalidade materna e da mortalidade neonatal dialogaria bem com os indicadores bioestatísticos, assim como com os fatores de proteção ou de risco, mas não convocaria imaginários à personalização. Uma rede Cegonha dialoga bem com indicadores culturais, relativos às pessoas mais que aos números (às mulheres e a cada mulher), sustentando a personalização (ou as práticas cuidadoras para com as mulheres). É por isso que não se trata, no discurso de Dilma, de “saúde pública” ou de “política social”, mas de “atenção integral à saúde”. Dita de outro modo?
Há algo diferente de “assistência materno-infantil” e de “saúde pública” na voz da presidenta. Não estamos, mesmo, ouvindo outro discurso? Não se trata de um discurso com outras práticas? Quem sabe outras “práticas” discursivas: romper com lógicas dominantes desde dentro de linguagens dominantes! Outras “redes” discursivas: interceder por outras e por novas políticas de saúde, sem reserva quanto aos focos agudos de experimentação da aflição! As mulheres (as várias mulheres) não se resumem à maternidade e ao nascimento, informam-nos.
Superado esse foco, fazer Saúde da Mulher, agora, terá de ser no espaço de criação, fugindo das previsibilidades, retomando as redes de diálogo, em exercício político, assumindo a politicidade do feminino. Serão outros anúncios nas políticas de saúde? Se menos politicamente correta a prática discursiva, ouvidos menos moralistas se fazem necessários, assim como novos atos discursivos, com e em redes de diálogo.
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