Médico, foi secretário de Ciência, Tecnologia e Insumos Estratégicos do Ministério da Saúde
É curioso como um tema que provocou tantos debates - chegou a ser objeto de audiências públicas no STF, em 2009 - tenha recebido tão pouca atenção dos atores envolvidos no momento em que se desenha uma saída permanente para os impasses que provocava. Em 28 de abril passado, a presidente Dilma Rousseff sancionou, sob o número 12.401, a lei que regulamenta o dispositivo constitucional da integralidade nos cuidados à saúde prestados pelo SUS.
A Lei nº 8.080, que criou o SUS em 1990 e que deveria ter regulamentado aquele dispositivo, infelizmente não o fez. Limitou-se a reiterar o que era prescrito na Constituição, e isso terminou por provocar, já neste século, uma avalanche de sentenças judiciais determinando a entrega de produtos e serviços nem sempre recomendados pelas autoridades sanitárias públicas, medicamentos em sua maioria.
De acordo com o último levantamento do Conselho Nacional de Justiça, há hoje cerca de 240 mil ações com esse objetivo em tramitação nos tribunais brasileiros. No ano de 2010, estima-se que algo em torno a R$ 500 milhões, sem previsão orçamentário-financeira específica, tenham sido gastos no atendimento a sentenças dessa natureza.
A lei recém-sancionada teve origem em dois projetos independentes iniciados no Senado em 2007. Embora pertencentes então ao mesmo partido (PT), os então senadores Flávio Arns e Tião Viana apresentaram seus projetos em perspectivas bastante antagônicas. Daquele momento até dezembro de 2010, primeiro no Senado e depois na Câmara, todo o esforço foi feito por parlamentares de muitos partidos, do Ministério da Saúde e do Conselho Nacional de Secretários Estaduais de Saúde para se chegar a uma redação consensual. Essa foi a redação aprovada na Câmara no final de 2010 e, com três vetos, sancionada pela presidente.
Segundo a nova lei, o fundamento da integralidade passa a ser o uso racional de produtos de saúde. O critério da racionalidade é definido pelos padrões de eficácia e de segurança (estabelecidos pela Anvisa), de efetividade e de custo-efetividade (estabelecidos pelo Ministério da Saúde) dos produtos candidatos. A racionalidade deve ser expressa em protocolos clínicos e diretrizes terapêuticas atualizados. O SUS está obrigado a fornecer apenas produtos que se enquadrem naquele fundamento.
Por seu lado, a lei prevê mudanças na gestão da avaliação tecnológica dos produtos e no processo de sua incorporação. A comissão de incorporação tecnológica do Ministério, existente desde 2006, conta agora com previsão legal e passa a ter a presença de representantes do Conselho Federal de Medicina e do Conselho Nacional de Saúde. Os processos de incorporação dos produtos passam a ser enquadrados (prazos e formatos) pela norma legal dos processos administrativos.
Nas audiências públicas de abril e maio de 2009 no STF, ficou bastante clara a desavença da maioria dos ministros com a doutrina da "reserva do possível" para direitos constitucionais, como é o caso do direito à saúde.
Isso quer dizer que a constatação de não haver recursos financeiros suficientes para o atendimento a uma demanda sem que haja prejuízo de outras demandas previstas no orçamento público da saúde, não é motivo bastante para que aquela demanda não seja atendida.
Daí a importância do conceito da integralidade, na lei sancionada, estar fundado na perspectiva do uso racional e não da "reserva do possível". A proteção dos cidadãos que necessitam de produtos de saúde deve estar fundada naquilo que chamamos de "melhor ciência", que nem sempre é sinérgica aos interesses do mercado e à dinâmica tecnológica que o governa em grande parte.
No meu ponto de vista, a "reserva do possível" poderia tornar-se um caminho real para magoar o único fundamento do SUS que talvez esteja acima da integralidade, que é o da universalidade. Afinal, se oSUS alega não poder atender uma demanda por não ter recursos financeiros, poderia estar abrindo caminho para que serviços privados possam atendê-la. E nesse caso, para quem possa pagar por ela.
A lei sancionada pela presidente é um grande avanço. Se usuários, profissionais, empresas e governo se unirem na sua compreensão e na sua aplicação, teremos dado mais um passo no aumento da eficiência do SUS. A prerrogativa de qualquer cidadão reivindicar na Justiça um direito seu, que creia ter sido violado, continua garantida. Mas, agora, os magistrados terão uma orientação muito mais firme para prolatar as sentenças.
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