na Gazeta do Povo
Um ano após o Conselho Federal de Medicina (CFM) editar uma resolução (n.° 1.939/2010) que proíbe os médicos de distribuírem cupons e vale-descontos de remédios para pacientes, a prática ainda é comum em clínicas e consultórios. O paciente é atendido, diagnosticado e recebe a receita e o cupom. Em seguida, se cadastra pela internet ou pelo telefone da empresa farmacêutica e recebe o benefício. Em alguns medicamentos, os descontos podem chegar a até 100% na primeira compra e 50% nas demais.
Para o CFM, esses cadastros violam o sigilo do paciente por causa do envio de dados pessoais e do número de registro do médico que concedeu o cupom. Além disso, podem revelar aos laboratórios o diagnóstico da doença a partir da prescrição. “Não é ético nem recomendável. O sigilo do paciente é um elemento básico”, diz o médico Renato Tambara Filho, do Comitê de Ética em Pesquisa em Seres Humanos do Hospital de Clínicas de Curitiba. Com as informações do paciente, o risco é que as indústrias enviem propaganda de remédios para o endereço do cadastro ou telefonem para saber se o paciente está seguindo o tratamento, uma função exclusiva do médico.
O problema é tão sério que a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) está debatendo os chamados programas de adesão ao tratamento. Por enquanto, não existe qualquer medida restritiva. Entretanto, a questão é vista com certa cautela já que, quando oferecidos por laboratórios farmacêuticos, os programas acabam ocasionando a fidelização do paciente a determinada marca de medicamento, o que suscita questionamentos do ponto de vista ético.
Rodrigo (nome fictício), por várias vezes, saiu de consultórios com um vale desconto em mãos. “Eu imaginava que fosse ilegal”, diz. Lima conta que até se rendeu à possibilidade de pagar menos por um medicamento, mas a burocracia para se cadastrar foi tão grande que desistiu. “Acho injusto. Seria melhor repassar os descontos para os medicamentos direto na farmácia”, defende.
O cupom de vale-desconto também acarreta em outro problema ético: a relação comercial entre o profissional da saúde e a indústria. De acordo com o texto da resolução do CFM, “ao se inserir como peça indispensável para esse tipo de promoção de vendas da indústria farmacêutica, [o médico] exerce a medicina como comércio, atuando em interação com o laboratório”.
Ainda segundo o CFM, os médicos não podem vincular a prescrição médica ao recebimento de vantagens materiais, exercendo simultaneamente medicina e farmácia. “O exercício da medicina é incompatível com o comércio, campo de atividade própria do capitalismo”, diz o secretário-geral do CFM, Henrique Batista, autor da resolução.
Na opinião de Batista, a indústria farmacêutica tem outras maneiras de divulgar novos medicamentos, sem a necessidade de se relacionar com o médico. “A indústria farmacêutica poderia intensificar a divulgação de seus produtos usando publicações, correio eletrônico e eventos científicos. Cabe a ela buscar outros meios de divulgação”, diz. O Conselho Regional de Medicina (CRM) de cada estado é responsável por fiscalizar o exercício da medicina e o cumprimento das resoluções do CFM, mas, segundo Batista, muitos desvios só podem ser coibidos por meio de denúncias.
Quando um médico é denunciado, o CRM abre um processo investigatório. Caso seja comprovado que o médico desrespeitou a resolução do conselho, a pena pode variar desde uma advertência reservada até a cassação do registro profissional.
Laboratórios dizem que programas apenas orientam o paciente
Para as indústrias de medicamentos, os programas de fidelidade ou acompanhamento colaboram com os pacientes. De acordo com Nelson Ambrogio, diretor da unidade de negócios Medicina Geral da Bayer HealthCare Pharmaceuticals, trata-se de um programa de orientação para o bom andamento do tratamento prescrito, que inclui também desconto nos medicamentos. “As vendas pelo programa representam menos de 1% das vendas da Bayer na área da saúde humana”, afirma.
A Novartis, que mantém o programa Vale Mais Saúde, explica que o programa, disponível para toda a população, visa melhorar a adesão dos pacientes ao tratamento prescrito pelos médicos, por meio de informação e da oferta de medicamentos a preços reduzidos. A empresa cita um estudo da Organização Mundial da Saúde (OMS) mostrando que a adesão ao tratamento é um fator-chave no gerenciamento de doenças crônicas.
De acordo com a Novartis, os dados cadastrais solicitados aos pacientes são unicamente para o funcionamento do programa. “Com o objetivo de assegurar a total privacidade dos participantes, todas as informações cadastrais fornecidas na inscrição ficam armazenadas em uma empresa especializada nesse tipo de serviço e não podem ser acessadas individualmente pela Novartis”, informa nota enviada pela empresa.
A Bayer afirma que a verificação do número de registro do médico no Conselho Regional de Medicina (CRM) é uma garantia ao próprio paciente. “A menção do CRM é uma importante indicação de que o produto foi prescrito por profissional habilitado”, diz Ambrogio.
Utilidade
Por meio de nota enviada pela assessoria de imprensa, o Sindicato da Indústria de Produtos Farmacêuticos de São Paulo (Sindusfarma), que representa 80% do mercado nacional, afirma que “a indústria farmacêutica entende que os planos de adesão de pacientes são úteis para a eficácia do tratamento e cura dos pacientes. Esses programas, de acordo com as regras de cada empresa, agregam uma série de serviços de suporte de interesse dos pacientes, preservando a liberdade de prescrição do médico. O Sindusfarma entende que a sociedade brasileira deve discutir amplamente esse tema”.
As duas empresas procuradas pela Gazeta do Povo não comentaram a resolução do Conselho Federal de Medicina que proíbe a prática. Ambas também afirmaram que não dão ou pagam nenhuma espécie de brinde para médicos.
Serviço:
Para fazer uma denúncia, a pessoa deve procurar o Conselho Regional de Medicina. Em Curitiba, a sede do CRM fica na Rua Victório Viezzer, 84, no bairro Vista Alegre. O telefone é (41) 3240-4000.
Nenhum comentário:
Postar um comentário