Lembro-me das aulas na Santa Casa e dos plantões no Cajuru. Corria a segunda metade da década de 1970. No ambulatório da Santa Casa e nos plantões do Cajuru, recebíamos os pacientes e vinha a pergunta: particular ou tem Inamps. Ou já era INPS? Nem lembro mais. Caso não fosse particular e nem tivesse a Carteira registrada (Previdência), escrevíamos “N/C”, o que significava “não contribuinte”.
Estes “não contribuintes”, dentro dos hospitais (Santa Casa e Cajuru), eram chamados de indigentes. Por mais trabalhador ou trabalhadora que fossem, não eram cidadãos ou cidadãs. Eram indigentes.
Muitos de nós, alguns ainda estudantes, não aceitávamos esta situação. Como que homens e mulheres que trabalham ou trabalharam a vida toda, que contribuíram pagando seus impostos, são indigentes?
Profissionais da saúde, estudantes e lideranças de alguns sindicatos começamos a lutar por um sistema de saúde que atendesse a todos e a todas, sem discriminação.
Começamos a lutar por uma reforma, que veio a se chamar “Reforma Sanitária”. Foi através desta luta que conquistamos o Sistema Único de Saúde (SUS).
Conquistamos o disposto no artigo 196 da Constituição: “A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação”.
Há outros artigos na Constituição e leis estabelecendo os direitos à saúde, mas creio que o artigo 196 é suficiente. Nele, estão garantidos os direitos de homens e mulheres à saúde.
Apesar disso, no Brasil e em Curitiba, todos os dias morrem os Alceus, as Marias, os Josés…
Sobre a morte do Alceu, Mario Lobato reproduziu aqui no blog CuritibaQuer.com uma nota publicada no último dia 17 de agosto pelo jornal “Gazeta do Povo”:
“[...]Mas o mais triste é saber que sua morte poderia ter sido evitada se a saúde pública brasileira fosse mais eficiente. Durante três dias Alceu sentiu dor no braço esquerdo. Levado pelo irmão a um posto de saúde da prefeitura, foi medicado, mas o médico que o atendeu pediu uma série de exames, que foram marcados pelo SUS para janeiro de 2012. Alceu não tinha plano de saúde. Só de viver mais alguns anos.”
Uma observação sobre o texto acima: os exames solicitados foram marcados para janeiro de 2012.
Como chama a atenção o Mario, “o drama do Alceu não é fato isolado. Na Curitiba “da família” (‘das famiglias’?) esta tem sido a regra. A propaganda oficial ‘mostra’ a excelência de um sistema de saúde modelo… mas tem que caprichar no ‘photoshop’!”.
E como tem que caprichar.
Comentando o artigo do Mario Lobato e a morte do Alceu, afirma o Dr. Angelo Col:
“Acho que também temos que repensar que tipo de homem queremos: ganancioso? egoísta? desonesto? corrupto? Se forem estes os tipos, os Alceus continuarão. Mas se for o inverso: humano, solidário, honesto, correto. Então, acho que os Alceus terão melhor sorte. E os outros também: terão educação digna, segurança e sistema de transporte eficiente e humano”.
Concordo, Dr. Angelo.
A Curitiba que a gente quer tem que debater qual é a melhor maneira de construirmos o homem e mulher “humano(a), solidário(a), honesto(a) e correto(a)”, ou seja, o cidadão e a cidadã com direitos e deveres.
Mas principalmente direitos, que hoje estão na lei e não são gozados e não serão plenamente gozados enquanto a política não for debatida. Enquanto não for construída uma Curitiba cidadã e politizada, continuaremos perdendo os Alceus, as Marias, os Joões…
No último dia 23 de setembro, pouco mais de um mês da morte do Alceu, li a seguinte notícia:
“Um paciente de 54 anos, que esperou durante cinco dias por uma vaga em uma Unidade de Terapia Intensiva (UTI) em algum hospital de Curitiba, morreu na tarde de quinta-feira (22) [...] O homem tinha hepatite, apresentava quadro de cirrose, e ficou cinco dias internado em um Centro de Urgências Médicas da prefeitura, no bairro Cajuru.[...]”
Um serviço eficiente de atendimento a saúde não pode marcar exames e consultas especializadas para daqui a dois meses ou até dois anos, como ocorre em Curitiba. Não pode um cidadão morrer na fila, seja da UTI ou do ambulatório.
A ineficiência da administração e o descaso com o cidadão e a cidadã estão fazendo retroceder o SUS ao velho “N/C”, pois só tem direito ao atendimento aqui no município quem paga algum seguro de saúde ou paga no caixa pelo atendimento.
Até quando vamos continuar perdendo o Alceu, o João, a Maria, ou tratando-os como indigentes? É isso o que Curitiba quer?
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