Revista da FH via Saúde Web
Ex-ministro assume a direção do novo Instituto Sul-Americano de Governança em Saúde da União de Nações Sul-Americanas (Unasul), com o objetivo de criar consensos, compromissos e políticas entre os países
FH – O problema de financiamento na cadeia de saúde constitui um cenário que se estende há várias décadas. O senhor acredita que a emenda 29 é essencial, mesmo que nem todos seus dispositivos tenham sido apresentados à sociedade? Será aprovada no Senado?
José Gomes Temporão: Conseguimos construir um consenso na sociedade brasileira, entre gestores, setor público e privado, parlamentares, sobre a importância da regulamentação da emenda por vários motivos. O primeiro deles é porque, em definitivo teremos claro, definido em lei, o que são gastos em saúde, pois até então não existia. Muito governadores contabilizam para fins de prestação de contas ações que na realidade nada tem a ver com o setor de saúde. A estimativa é que R$ 72 bilhões por ano deixam de ser aplicados na saúde por essa questão. Então, a emenda aprovada, de uma vez por todas, impedirá que despesas que não são de saúde sejam estritamente da área de saúde contabilizadas como se fossem. O segundo ponto, é mais importante ainda, é uma repactuação da sociedade brasileira sobre a importância de ampliar os gastos em saúde. Essa discussão de que o problema da saúde é de gestão é um argumento de uma fragilidade incrível porque todos os sistemas de saúde do mundo enfrentam problema de gestão e sempre será assim porque melhorar a qualidade e eficiência do gasto, impedir mal uso e desvio do recurso é uma tarefa de todos os dias nos sistemas e não referente ao Brasil. Não se pode com isso negar que a saúde pública brasileira não tenha recursos suficientes. Sim, temos problemas de gestão, sim temos problemas para melhorar a eficiência do gasto, sim temos de impedir o desvio e mal uso de recursos, mas, ao mesmo tempo, admitir que o sistema de saúde público brasileiro é subfinanciado. Basta comparar com nossos vizinhos Chile e Argentina que gastam mais n sistema de saúde público. Um dado contundente é que apenas 40% gastos em saúde no Brasil são públicos. Na verdade, quem financia a saúde brasileira são as famílias e as empresas. O Brasil precisa gastar mais e, obviamente, gastar bem.
FH: Nesse sentido, qual a importância das PPPs para aliviar essa conta, tendo em vista as dívidas que as Santas Casas acumulam e os conflitos que todos os serviços de saúde sofrem num efeito cascata?
Temporão: As Parcerias Público Privadas e alternativas como outros modelos de gestão se encaixam, justamente, nos recursos disponíveis. Então, são válidas, desde que os princípios válidos dos sistemas de saúde não sejam comprometidos. Refiro-me aos princípios da universalidade, da equidade, da integralidade e da gratuidade. Dentro deles, as PPPs e inovações em modelos de gestão, desde que não levem também às terceirizações e fragilizações entre profissionais e organizações me parecem que vem ajudar. Essa questão está dentro do debate público, com certeza.
FH: E qual é sua visão sobre os royalties do petróleo para beneficiar à saúde? Há uma perspectiva real de financiamento do setor diante de um cenário de receita futuro?
Temporão: Insere-se dentro desta visão mais ampla de onde tirar os recursos. De um lado, há uma grande rejeição da sociedade brasileira em aumentar a carga tributária. Uma fonte que parece importante é óbvia, e é impressionante como não se consegue avançar sobre isso é que cigarros no Brasil é muito barato. E uma das maneiras de reduzir o consumo é aumentar o preço. O cigarro no Brasil é ridiculamente barato quando comparado a outros países, como Europa e os Estados Unidos. Aqui são vendidos por ano 5 bilhões de maços. Se colocarmos recursos específicos para a saúde, teríamos uma fonte importante. Outra seria taxar as bebidas alcoólicas, cerveja, cachaça, poderiam ter uma taxação específica destinada à saúde pública. O petróleo entraria nessa possibilidade. Mas na realidade temos uma questão de tempo. O Pré-Sal ainda é uma hipótese. Teríamos de esperar uns 10 anos para que essa receita seja disponibilizada. E a saúde não pode esperar tanto. Ainda assim, acredito que é uma alternativa, como o próprio marco regulatório que colocou a saúde como umas das áreas a ser beneficiada.
FH: Como os serviços e estabelecimento de saúde devem se preparar para a Copa do Mundo e as Olimpíadas? O senhor acredita que haverá um significativo aumento de demanda que precisa ser antecipado desde agora pelos serviços públicos e a rede de saúde suplementar?
Temporão: Fazemos todos os anos no dia 31 de dezembro uma festa no Rio de Janeiro que coloca 3 milhões de pessoas na rua, em Copacabana. O Brasil já tem certa experiência em grandes eventos. Tivemos os Jogos Pan-americanos, no Rio. É importante que a sociedade receba um retorno do investimento gigantesco que serão feitos com dinheiro público e vão depender dos jogos dos dois eventos. Durante muito tempo, dos anos 50 aos 70, o Rio de Janeiro era o centro da medicina brasileira. A residência médica começou nos Hospital dos Servidores, e nos anos 80 e 90 houve a degradação da saúde pública no País. Está sendo feita um grande esforço de recuperação da estrutura física e do serviço. Minha expectativa é que as Olimpíadas possam, de uma vez por todas, recuperar esse patrimônio que foi abandonado por muito tempo que são os hospitais universitários e do ministério da saúde no Rio de Janeiro e fortalecimento do sistema de saúde como um todo. Também acho fundamental a parceria com o setor privado no sentido de que, especificamente, voltado aos visitantes, turistas, atletas que estarão aqui, durante os jogos, que tenhamos uma atenção de prevenção e cuidado de alto nível e acredito que o Brasil já tenha como oferecer tudo isso.
FH: Qual o balanço que o senhor faz em relação a sua gestão no ministério da saúde?
Temporão: É complexo. Foram quatro anos. Trabalho com saúde pública há 35 anos, sou professor da Fundação Osvaldo Cruz e me esforcei em boa parte da minha vida no fortalecimento do SUS e como ministro foi o que me dediquei a fazer. Mas destacaria alguns pontos, como a discussão da gestão, com a proposta que fiz com as fundações estatais de direito privado; toda a questão da pesquisa e fortalecimento das indústrias no País com o estabelecimento importante das PPPs na produção de medicamentos e tecnologias para o SUS, incorporação de três novas vacinas no SUS; o combate à publicidade de bebida alcoólica e o saúde do homem. Pela primeira vez no País implantamos uma política nesse sentido. Foram muitos projetos e faço um balanço, sendo honesto e franco, de que foi uma boa gestão.
FH: Permanente, o senhor busca estimular a cooperação entre instituições como a Fundação Osvaldo Cruz, a Anvisa, o Instituto Adolfo Lutz. Qual a sua sugestão para inspirar aos players da saúde na iniciativa privada a atuarem nessa perspectiva de colaboração técnica, parceira e transparência mantendo a competitividade de mercado em níveis saudáveis?
Temporão: Sempre que possível ampliar o diálogo e estreitar as relações, é claro, tendo uma capacidade de regulação própria, que respeite os aspectos de cidadania. Vejo que as cooperações institucionais, de diálogos sejam na saúde ou em outros fóruns me parecem sempre o melhor caminho. Muitas vezes, o setor público tende a aprender com práticas que vem do empresariamento e do mercado, com experiências inovadoras, inclusive entre estados, municípios e o próprio Governo Federal. O que se tem de defender não é colocar limites estanques nessa relação ou apenas estabelecer uma relação nos termos restrito da lei, mas sim que trabalhe no fortalecimento do sistema público, que é o que nós queremos.
FH: O senhor sempre defende a necessidade de repolitização da saúde. Como isso seria feito na atual conjuntura de discussões sobre refinanciamento, portas de entradas, PPPs, novos partidos políticos, entre outros aspectos num cenário macroeconômico e ambiental?
Temporão: Me refiro a uma visão perigosa que confunde saúde com assistência, que é apenas uma dimensão da primeira. Da mesma maneira, um hospital é apenas um ponto de atendimento dentro de um sistema complexo. A assistência é um ponto dentro de uma questão mais abrangente que tem a ver com as condições de vida, de educação, cultura, moradia, saneamento, alimentação, atividade física. Saúde tem a ver com bem-estar, com um padrão de qualidade de vida. Portanto, a repotilização se refere a essa questão. É importante que a sociedade que, quando garantimos acesso ao ensino de qualidade, também investimos na saúde. Quando investimos em espaços de trabalhos seguros, que diminuam os riscos de acidentes também. Quando universalizamos o acesso à água tratada e esgotamento sanitário, estamos investindo em saúde. Então, essa é a visão mais ampla que nós temos de ter.
FH: No Isags o senhor assume com a proposta de compartilhar com os países membros da América Latina os desafios, propostas e consensos. Quais os elementos comuns entre países de dimensões, políticas, histórias e necessidades tão distintas da população em saúde?
Temporão: Esse é um dos desafios do Isags. Queremos chamar a atenção de que o Isags expressa uma aumento da saúde na agenda continental. Cada vez mais é tema de debates dos fóruns internacionais, na Câmara Mundial de Comércio, todas as discussões sobre proteção patentária, e a última epidemia de gripe H1N1 foi um exemplo de que como um evento de nível global afeta as relações comerciais, cria ameaças e, portanto, precisamos discutir juntos como enfrentar esse problema. No continente sul-americano, é interessante que, quando foi lançado a Unasul [União de Nações Sul-Americanas] foram criadas duas áreas institucionais, a de defesa, estruturada em Buenos Aires no Instituto Sul-Americano de Defesa e Saúde, onde temos uma estratégia que envolve temas como universalidade, recursos humanos, vigilância epidemiológica, entre outros pontos, e a criação de um instituto com sede no Rio de Janeiro, o Isags, que estou dirigindo. A proposta é apoiar os ministérios de saúde do continente na melhoria de sua capacidade de governo, em gestão, formando quadros, colocando a disposição modelos de governança para melhorar o desempenho desses sistemas.
FH: Que países os sul-americanos o senhor considera referência, no sentido de olhar para frente em antecipar as tendências assistenciais implementando uma nova visão e política de conduta e investimentos?
Temporão: É um ponto de vista pontual, Argentina e Chile são países como o Brasil, com sistemas mais organizados. Por outro lado, Bolívia, Peru, Equador, Colômbia estão fazendo grandes esforços e investimentos no fortalecimento dos sistemas, mas eles são muito diferentes. O Isags vai atuar propondo linhas de atuação conjuntas, que sejam consenso entre todos os países e a principal é que todos concordam, se não formarmos países capazes, com bons dirigentes e gestores, não tem funcionalidade. Então, o Isags entra exatamente aí, para ajudar esses países a formar seus quadros de dirigentes.
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