Pesquisadores afirmam que problemas graves são deixados de lado nas discussões da OMS
A ideia de que saúde não é apenas ausência de doença não é nada nova: a Constituição da Organização Mundial da Saúde (OMS), de 1946, já define saúde como “um estado completo de bem-estar físico, mental e social”. O conceito de determinantes sociais da saúde – que considera que condições de vida e trabalho estão relacionadas com a situação de saúde de indivíduos e grupos sociais – dá conta disso, e relaciona a saúde a outros direitos, como educação, trabalho e alimentação.
Discutir esses determinantes, as experiências de diversos países nesse sentido e as políticas públicas necessárias para diminuir as iniquidades em saúde é a finalidade da Conferência Mundial de Determinantes Sociais na Saúde, que acontece de hoje até sexta-feira (19 a 21 de outubro) no Rio de Janeiro.
Mas alguns pesquisadores da área parecem mais preocupados do que confiantes em relação ao evento. Ontem teve início uma série de sessões paralelas à Conferência, também no Rio, e, em sua palestra, o professor equatoriano Jaime Breilh, diretor da área de saúde da Universidade Andina Simón Bolívar, foi bem direto: “Este evento paralelo é onde pus minhas esperanças. Não tenho muitas nesse outro [a Conferência], de que também vou participar dizendo as mesmas coisas duras que direi aqui, mas acho que, lá, haverá muitos ouvidos surdos. Se há alguma possibilidade de agenda progressista, é aqui”, disse.
A professora Fran Baum, professora de saúde pública na Flinders University, na Austrália, também expressou sua inquietação: “Será que esta Conferência não será, na realidade, apenas o funeral da Comissão da OMS sobre Determinantes Sociais da Saúde?”. Ela se referia à Comissão criada em 2005 que publicou, três anos depois, um relatório sobre a situação global. De acordo com Fran, que participou da Comissão, desde 2008, quando o relatório foi entregue, a OMS não fez nenhuma ação a partir dos resultados.
Problemas do documento de discussão
De acordo com o sítio eletrônico da Conferência, o evento foi convocado justamente porque, após analisar o relatório, a Assembleia Mundial de Saúde solicitou à OMS que se fizesse um encontro mundial “para discutir novos planos para enfrentar as tendências alarmantes de desigualdades na saúde através da ação sobre os determinantes sociais”.
Mas Fran afirmou que o documento de discussão da Conferência sequer cita a Comissão e o relatório, e que os conteúdos divergem inteiramente. “O relatório tem alguns pontos cruciais. Nele, examinamos as correlações de forças do regime em que vivemos e olhamos para os impactos do neoliberalismo na saúde, que são apresentados como uma ameaça à saúde. Falamos do impacto das grandes companhias transnacionais, observamos a relação entre saúde e a crise ambiental”, disse, comparando-o ao documento de discussão: “Ele é vago e não toca em pontos centrais, como o crescimento da iniquidade no mundo, o papel do setor privado e a mercantilização da saúde. O documento nem cita o impacto das transnacionais, cujo poder aumentou muito nos últimos 25 anos. E o fato é que, por mais que elas se apoiem em formas como a da responsabilidade social empresarial, a verdade é que sua tarefa é aumentar seus lucros, e não se preocupar com a saúde da população”, observou.
Discussão de modelos
De acordo com ela, nos últimos anos as iniquidades têm crescido, as mudanças climáticas também, a injustiça comércio internacional permanece e a crise financeira tem levado a uma diminuição da proteção social em muitos países. “Não é a toa que as pessoas estão ocupando Wallstreet. Elas estão reconhecendo e dizendo ao mundo que isso é injusto. A legitimidade desse regime está sendo questionada hoje, e essa série de protestos populares mostra isso. É preciso reconhecer que esses protestos são movidos por demandas e questionamentos justos”, afirmou, defendendo a necessidade de se rediscutir o neoliberalismo.
Cristina Laurel, coordenadora e fundadora da Associação Lationamericana de Medicina Social (Alames) e ministra da saúde do México, acredita que é interessante observar os movimentos latinoamericanos nesse sentido. “Temos processos interessantes que levaram ao estabelecimento de alguns governos que vão um pouco contra a corrente global. Não que sejam socialistas, mas trata-se de países em que a população começou a dizer um ‘Basta’, e decidiu levar populares ao poder”, disse. De acordo com ela, com o apoio de movimentos populares, é possível que um governo consiga ir contra a corrente. “E, se isso não acontecer, os problemas sociais e políticos no mundo só vão se tornar ainda mais conflitantes”.
David Legge, professor de Saúde Púbica da Universidade de La Trobe, na Austrália, concordou com Fran quanto à necessidade de se questionar o neoliberalismo, mas disse que é preciso ir mais longe. “A questão é: o que estabiliza esse regime? O que o reproduz? Temos que perguntar quais são as estruturas do regime que criam e reproduzem as iniquidades. Temos que pensar sobre ideologia, analisando todas as estruturas que a produzem”, defendeu. E completou: “O pensamento corrente é o de que não existe alternativa. Mas há, sim”.
Para o brasileiro Armando de Negri, do movimento Saúde dos Povos, o problema não é só o neoliberalismo, mas o próprio sistema capitalista. “Como pensar em direitos e em proteção social, a sério, dentro desse sistema? Hoje, embora seja teoricamente um direito, a saúde é vista como um commodity”, afirmou. Fran concorda: “`Precisamos discutir direitos. Como atingir a proteção social universal, a universalização da educação e uma saúde pública financiada pelo poder público, motivada pelo direito à saúde, e não pelo lucro privado”, disse.
Um insulto à inteligência
Esse deve ser o centro das discussões, segundo Jaime Breilh. Ele afirmou que não se pode defender apenas o direito à saúde, mas à vida, e completou: “Precisamos superar uma lógica econômica não sustentável. Porque a verdade é que o capitalismo não é sustentável: é individualista, competitivo, não é solidário, está pautado no desperdício, é ecologicamente agressivo. Acredito que não possamos falar apenas em determinantes sociais, essa denominação ‘light’. O que precisamos é atuar sobre processos históricos. É ilusão focar na desigualdade descontextualizada, deixando a economia política dessa determinação social de lado”, afirmou.
Jaime deu muitos exemplos de como o sistema inviabiliza a discussão séria sobre determinantes sociais e sobre a redução de iniquidades a partir disso. “A concentração de terras está aumentando em todo o planeta – e não só de terras, mas de sementes, água e todo tipo de recursos naturais, que se tornaram mercadorias. Como falar em segurança alimentar – um determinante social da saúde – diante disso? Como assegurar segurança alimentar, quando passamos por problemas como o uso extensivo de agrotóxicos, por exemplo? Com trabalhadores do campo explorados e morrendo por excesso de trabalho e sendo contaminados por produtos químicos? Dizer que se pretende diminuir iniquidades em saúde a partir dos determinantes sociais sem levar em conta esses aspectos é realmente um insulto à inteligência”.
Jaime defendeu que, embora o documento de discussão da Conferência não contemple esses aspectos, é preciso que a Declaração do Rio – que será redigida na sexta-feira – dê conta deles, Ele disse que deve constar a relação direta e inseparável entre justiça econômica, ambiental e cultural, fundamental para a proteção da vida, e afirmou ser essencial acabar com a visão antropocêntrica do mundo. “Temos em conta que nós somos o centro e que a natureza são os nossos recursos, a nosso serviço. Desdobrando essa lógica, trabalhamos com a ideia de que o ser humano é o ‘dono’ e que, portanto, a natureza pode ser mercadoria. O metabolismo entre sociedade e natureza está numa lógica produtivista de acumulação, e isso tem todas as implicações com a saúde. Isso tem que estar na Declaração. Se não estiver, essa Conferência não terá saído da ‘bandeira’. Terá fracassado”, determinou.
Armando de Negri lembrou a fala de Fran Baun para defender o que acredita ser a tarefa da Conferência. “A professora disse que a Conferência pode ser um funeral. Eu acredito que o funeral já aconteceu há muito tempo, e não é fácil fazer o resgate do corpo. Mas o que precisamos é abrir o caixão e mostrar que estamos aqui”, concluiu.
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