O Sistema Único de Saúde (SUS) é descrito pelo governo como a maior rede pública de saúde do mundo. Ao instituí-lo, a Constituição de 1988 foi, de fato, audaciosa. Determinou que cada brasileiro teria todas as suas necessidades de saúde atendidas gratuitamente - de uma mera aspirina a um complexo transplante de coração.
Para tentar cumprir a lei, o governo federal, os estados e as prefeituras destinaram à saúde R$ 110,5 bilhões em 2008. Com tal montante, seria possível construir e equipar mais de 2.200 hospitais de médio porte.
Apesar da grandeza, esse valor não é suficiente. Faltam remédios nos hospitais; a espera por consulta chega a meses; por cirurgia, a anos; médicos recebem salários irrisórios; faltam profissionais no interior do país e na periferia das cidades grandes; aparelhos médicos passam semanas parados por falta de conserto; epidemias de dengue causam mortes todo verão; doentes brigam nos tribunais para serem tratados.
No ano 2000, para garantir os recursos do SUS, a Constituição recebeu uma emenda - a Emenda 29 - fixando o mínimo que cada esfera do poder público deveria aplicar. A União precisaria investir em saúde o valor do ano anterior mais o crescimento do produto interno bruto (PIB). Os Estados, 12% de seus impostos. E as prefeituras, 15%.
Brecha na lei
A Emenda 29, porém, nunca conseguiu acabar com as mazelas do SUS. A razão: não foi regulamentada até hoje. A Constituição ficou com uma brecha por não dizer o que são gastos em saúde pública. Assim, os governantes usam subterfúgios para atingir os mínimos constitucionais. Usam os cofres do SUS para pagar a despoluição de rios, a varrição das cidades, a merenda das escolas e até o plano de saúde dos funcionários públicos. Sem a regulamentação da emenda 29, os governantes interpretam que tudo isso tem impacto na saúde e pode ser pago pelo SUS.
Em 2008, o Rio Grande do Sul informou ter aplicado em saúde 12,39% das receitas. Uma auditoria do SUS descobriu que, cumprida a Emenda 29 ao pé da letra, aplicou apenas 4,37%. Pelas últimas contas do Ministério da Saúde, a rede pública perdeu R$ 9 bilhões anuais com subterfúgios desse tipo nas três esferas de governo.
O projeto que regulamenta a Emenda 29 chegou ao Congresso em 2003. O texto diz, claramente, o que é saúde pública e o que não é. Limpeza urbana, merenda e plano de saúde não são. Após anos de tramitação arrastada no Senado e na Câmara e de promessas eleitorais, a regulamentação finalmente acaba de ter a votação derradeira. Os senadores a aprovaram duas semanas atrás. Para valer, depende apenas do aval da presidente Dilma Rousseff.
O texto desagradou aos defensores da saúde pública. Apesar de reconhecerem que as "maquiagens" acabarão, eles se queixam de que o SUS não terá um reforço financeiro tão grande quanto o exigido pelas dificuldades do dia a dia. Os R$ 9 bilhões hoje perdidos nas "maquiagens" não chegam perto dos R$ 45 bilhões extras anuais que o Ministério da Saúde calcula como o necessário para dar qualidade ao SUS.
No Congresso, o projeto chegou a ganhar dois dispositivos que dariam mais musculatura ao SUS. O primeiro previa a criação de um imposto para a saúde - nos moldes da extinta CPMF, que até 2007 respondeu por 35% do orçamento do Ministério da Saúde. O segundo dispositivo determinava que a União também teria uma porcentagem a aplicar no SUS - 10% das receitas. Hoje, destina o equivalente a 7%. Nenhum dos dois dispositivos vingou.
- É decepcionante. O subfinanciamento do SUS vai continuar - diz Luiz Augusto Facchini, presidente da Associação Brasileira de Pós-Graduação em Saúde Coletiva (Abrasco).
Faltou pressão da sociedade. Segundo Facchini, as classes média e alta veem o SUS como um sistema de pobres. Esquecem que a vacinação, o programa de Aids, os transplantes, o controle de epidemias e a fiscalização de alimentos e remédios são feitos pelo SUS.
Falta de empenho
Para Francisco Batista Júnior, diretor do Conselho Nacional de Saúde (ligado ao Ministério da Saúde), não houve interesse nem empenho do governo:
- Os 10% não passaram porque a equipe econômica é forte. Ela trabalha com a lógica de economizar, de fazer o ajuste fiscal. O imposto não passou porque o governo não teve competênciapara convencer a sociedade e a oposição.
O presidente do Conselho Nacional de Secretarias Municipais de Saúde (Conasems), Antônio Carlos Nardi, descreve a regulamentação aprovada como "um balde de água fria":
- Não é na porta do ministro ou do governador que o cidadão bate quando não consegue ser atendido no hospital. É na porta do prefeitura. Muitas prefeituras aplicam 25%, 30% das receitas em saúde. Isso é ingovernável. Não sobra dinheiro para outras políticas. A situação vai continuar crítica.
Segundo o ex-ministro da Saúde e atual líder do PT no Senado, Humberto Costa (PE), em 2012 a Casa formará uma comissão que terá dois meses para propor novas fontes de financiamento para o SUS.
Ricardo Westin / Jornal do Senado
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