Lenir Santos[1] [2]
A crise do Estado mais recente refere-se à diminuição de suas atividades em razão do traspasse de serviços públicos a entidades privadas mediante concessão e permissão, além da privatização de muitas delas. De acordo com Sabino Casesse, a crise do Estado atualmente “significa perda da unidade do maior poder público no contexto interno e perda da soberania em relação ao exterior”.
Sem dúvida, o alargamento das atividades do próprio Estado, em razão do aumento das atividades globais e da garantia de direitos, exigem novas formas de gestão. O SUS não escapou dessa necessidade de participação do setor privado como complementar às atividades públicas da saúde.
A Constituição de 88 tratou desse tema ao permitir ao Poder Público recorrer aos serviços privados de saúde quando os próprios fossem insuficientes.
A complementaridade prevista na Constituição tinha o condão de não criar embaraços à Administração Pública que, na época, contava com 70% dos serviços privados complementando os serviços públicos. Impossível desconsiderar tal fato. Era o INAMPS quem mantinha esses contratos e convênios com o setor privado lucrativo e sem fins lucrativos.
Contudo, de crise em crise – do financiamento às dificuldades da Administração Pública em gerir os serviços de saúde – novas formas de terceirização surgiram, como as organizações sociais, as organizações da sociedade civil de interesse público e outras modalidades, como cooperativas de serviços, fundações de apoio, parcerias público-privada (PPPs) etc.
A realidade é que hoje seria impossível defender uma Administração Pública executora direta de serviços sem contar com a participação do setor privado. O problema é a complementaridade ser substitutiva dos serviços públicos. O risco é invés de se complementar os serviços públicos, sob regras públicas e em quantidade que realmente possa ser denominada de complementar, a gestão pública minguar e os serviços privados crescerem além da justa medida e sem os necessários e devidos controles.
Os limites tem sido tênues. E na saúde há, muitas vezes, uma confusão entre esses interesses, principalmente quando entidades sem fins lucrativos. A inversão é perigosa. O SUS poderá, em muitos casos, ser complementar da atividade privada lucrativa, em nome de um direito à saúde que, no nosso entendimento não pode sustentar-se nesse tipo de reivindicação. Esse será um caminho invertido, um caminho que irá na contramão do direito à saúde e a favor do consumo de saúde.
Nesse ponto importa pensar que, se a atividade privada não perecerá e irá conviver com a pública no mesmo espaço social de garantias de direitos – a atividade privada terá, de fato, de ser complementar e não substitutiva do Estado. E essa complementaridade precisa ser consubstanciada em ajuste de colaboração e contratos de prestação de serviços que de fato sejam capazes de manter o controle do Poder Público sobre o setor privado complementar. É preciso encarar essa realidade e regulá-la em prol do interesse público.
Urge encarar essa realidade: o Poder Público não irá prescindir da sociedade. Em sendo assim, é necessário desenvolver mecanismos, não apenas de controle das atividades, mas que possam impor rumos, diretrizes, princípios públicos, controles que devem contar com a participação eficaz de uma sociedade consciente de seus direitos e com sentimento de pertencimento aos serviços de interesse público.
As finalidades coletivas devem motivar os serviços privados que estejam a serviço do Estado, mediante contrato. Isso não significa negar que o setor privado deve gozar de suas autonomias, ter justo retorno do capital investido, sem contudo descurar do seu fim: atendimento dos interesses sociais, coletivos, públicos.
Assim, não podemos mais ignorar as interdependência do público e do privado, fazendo de conta que o Estado irá de forma direta executar todas as atividades que lhe são próprias, sem contar com o setor privado, e que o setor privado pode atuar sem a participação do público.
Há que se ter a justa medida. Ela precisa ser demarcada, delimitada, controlada, fiscalizada e estar sob o comando público no tocante aos princípios, diretrizes e cumprimento das finalidades públicas.
E isso deve se dar fundamentalmente no plano político: cidadania,  democracia, transparência, qualidade de serviços, atendimento das necessidades públicas.
[1]Coordenadora do Instituto de Direito Sanitário Aplicado – IDISA; Coordenadora do Curso de Especialização em Direito Sanitário da UNICAMP-IDISA; ex-procuradora da UNICAMP.
[2]Lenir Santos é a responsável pela concepção e elaboração do projeto do decreto para o Ministério da Saúde.