Participantes do Fórum Social Temático denunciam que, em nome da crise econômica, os governos desmantelam sistemas de seguridade social.
Ao lado das crises econômica, política, ecológica e climática, cresce também uma crise sanitária, que agrava a qualidade de vida e a saúde de milhares de pessoas. Esta é a conclusão do Grupo de Trabalho Saúde (GT Saúde), que se reuniu durante o Fórum Social Temático Crise capitalista, justiça social e ambiental, realizado no final de janeiro, em Porto Alegre (RS). "O conceito de crise sanitária surgiu por meio de uma análise da situação mundial, das conseqüências da crise ecológica e da desigualdade social, que é aprofundada com a crise. A maioria da população tem um nível de vida que está baixando em todos os sentidos, como a distribuição e tratamento da água ou a falta de trabalho que resulta em uma perda de dignidade. Isso causa muito mais doenças e problemas sanitários, que ainda são agravados pelas catástrofes climáticas. E não há resposta para esses problemas, porque há outro fenômeno em curso, a crise financeira causada pela dívida pública que é muito forte na Europa", afirma o facilitador do GT Saúde, Julien Terrie, membro das Conferências Européias de Defesa da Saúde Pública e Proteção Social. "Diante dessa situação de crise, os governos não querem mais dar recursos públicos para a saúde e a proteção social e, pior ainda, estão quebrando os sistemas de hospitais públicos e de proteção social para recuperar dinheiro para dar aos bancos e ao sistema financeiro. Se as pessoas não pagam pelos serviços, elas não recebem proteção, e isso não é possível para muitas pessoas", completa.
Julien, que é técnico em radiologia na França e também faz parte de uma central sindical de trabalhadores, ressalta como o problema atinge populações em todo o mundo. "Um exemplo muito claro é a queda da expectativa de vida nos Estados Unidos. É incrível como, pela primeira vez na história, um país desenvolvido está com a expectativa de vida baixando. Isso sem guerras, sem epidemias, sem outros fatores que não sejam os fatores econômicos. Então, essa crise de civilização que estamos vivendo está bem marcada também por essa falta de respostas no campo da saúde", observa. Segundo ele, o conceito de crise sanitária resgata a epidemiologia crítica que surgiu na América Latina na década de 1970 e que falou pela primeira vez na determinação social da saúde. "A pessoa pobre, tem muito menos possibilidades de ser saudável do que se a rica e isso está piorando. A Organização Mundial da Saúde (OMS) não faz um diagnóstico claro e preciso disso porque, se fizerem, terão que tratar da maior contradição do capitalismo hoje, que é a necessidade de quebrar o sistema de proteção social. Só o sistema da França, movimenta 400 bilhões de euros com a contribuição dos trabalhadores. Esse dinheiro para um capitalista é um dinheiro perdido, porque não está no sistema financeiro, então, eles são obrigados a quebrar o sistema de proteção social para tirar esses 400 bilhões, que representam 35% do PIB francês", exemplifica.
Para Julien, há governos que redistribuem um pouco mais a riqueza, embora a lógica mundial seja a mesma - de desigualdade sanitária. Ele pondera, entretanto, que onde há alguns avanços eles só se concretizam com mobilização e organização popular. "Outro conceito importante é o de democracia sanitária, que consiste na afirmação de que as necessidades de saúde devem ser discutidas pela população e pelos profissionais de saúde. Se não houver essa democracia, é o capital que irá escolher o que é necessário ou não. Então, se os 99% mais pobres do mundo não decidirem sobre as suas prioridades de saúde, será o 1% mais rico que irá decidir", destaca.
Privatizações no sistema de saúde europeu
Assim como no Brasil, estão em curso processos de privatização dos sistemas públicos de saúde em todo o mundo, segundo denunciaram os participantes internacionais do Fórum Social Temático. A médica francesa Françoise Nay detalha como a saúde pública de seu país está sendo entregue à iniciativa privada. "Os hospitais são entregues diretamente para o setor privado lucrativo, não através de associações, fundações ou ONGs, mas com diversas outras formas de privatização. É possível, por exemplo, que seja privatizado apenas um setor de um hospital público utilizando os materiais e profissionais que já existem lá. Outro exemplo comum é a construção de hospitais públicos pelas empresas privadas, de forma que a empresa cobre um aluguel da previdência social. Em Paris, há um hospital sendo construído pelo qual a empresa cobrará 40 milhões de euros por ano de aluguel". Ela explica que o sistema de saúde francês é bancado pela contribuição dos trabalhadores por meio dos recursos da previdência social, como acontecia no Brasil antes da Constituição de 1988.
Françoise é vice-presidente da Coordenação Nacional dos Comités de Défense dês Hôpitaux et Maternités de Proximité, que congrega profissionais de saúde, usuários e moradores do entorno de maternidades francesas ameaçadas de fechamento. Segundo ela, recentemente, dez maternidades foram fechadas na França. No final dos anos 1970, o país tinha 1.300 casas de saúde desse tipo, hoje, são apenas 500. A médica explica que as mulheres francesas têm os bebês em maternidades muito grandes, que realizam cerca de quatro mil partos por ano e concentram todos os nascimentos de um território extenso, distante das residências de muitas mulheres. Além disso, de acordo com ela, o objetivo é que as mulheres permaneçam apenas um dia no hospital, ao contrário do que acontecia antes, quando ficavam internadas por cerca de quatro dias recebendo os tratamentos necessários e aprendendo os primeiros cuidados com os filhos. "O que acontece agora é que muitas mulheres vão embora e logo voltam com complicações de saúde nelas e nos bebês. Isso faz parte da crise sanitária", comenta.
A médica conta que, atualmente, em algumas cidades francesas só é possível encontrar determinadas especialidades médicas no setor privado, como é bastante comum no Brasil, mas até pouco tempo não era na França. A realidade francesa também se assemelha a do Brasil quando o assunto é o crescimento dos planos privados de saúde, que, segundo Françoise, têm crescido assustadoramente nos últimos anos. "Os planos privados estão escolhendo algumas especialidades médicas que são mais rentáveis, como coronografia [cateterismo no coração] e operações de cataratas. São áreas rentáveis porque são bem pagas e não tem muitos riscos de complexificação do quadro dos pacientes. Já no setor público, permanecem os setores que não são rentáveis, como gravidez de risco e casos de câncer", conta.
De acordo com Julien e Françoise, a situação é ainda pior em países como Grécia e Polônia. Neste último, uma reforma recente fez com que todos os profissionais dos serviços de saúde públicos passassem a não ser mais servidores públicos, mas sim, profissionais autônomos. "Na Grécia, 71% do orçamento público está indo para os bancos, o que é possível fazer com os 29% restante? Praticamente nada. Os indicadores de desenvolvimento humano na Grécia despencaram e passaram a ser como o de países da América Latina", salienta Julien.
Vitória da saúde pública
Na contramão do que vem acontecendo em outros países europeus, mobilizações recentes na Romênia e na Eslováquia pararam os processos de privatização da saúde pública nessesdois países. "A Romênia tinha um projeto de privatização total da saúde pública, assim como a Polônia. Mas, quando um médico que era uma figura pública muito importante, pediu demissão por causa disso, a população foi para as ruas e gerou-se uma mobilização muito grande no país que conseguiu parar o processo de privatização. E na Eslováquia, com a mobilização de 2.400 profissionais de saúde que permanecem atualmente em greve, o processo de privatização está parado", contam Françoise e Julien.
Julien destaca ainda a importância das pessoas que lutam contra a privatização da saúde em todo o mundo se conhecerem e trocarem experiências. Para ele, a Cúpula dos povos, que será realizada em junho de 2012, paralelamente à Conferência Rio+20, será mais uma oportunidade nesse sentido. "Quando conseguimos mudar a organização do trabalho, teremos menos problemas de saúde. Na França, por exemplo, temos muitos suicídios nos locais de trabalho. E, como sindicalistas, percebemos que quando há pessoas que enfrentam a lógica sagrada capitalista de organizar o trabalho, há menos risco para a saúde das pessoas", conclui.
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