Em 1976 a Organização das Nações Unidas declarou o 21 de março como Dia Internacional de Luta pela Eliminação da Discriminação Racial para tornar inesquecível o massacre de Sharpeville, África do Sul (21 de março de 1960), quando foram assassinadas, pelo governo do apartheid, 60 pessoas negras e mais de 180 ficaram feridas (mulheres, crianças e homens) durante um protesto pacífico contra a obrigatoriedade do uso do “Livro de Passes” para acesso às “áreas de brancos”. Falarei sobre o racismo nosso de cada dia.
No Brasil, o combate ao racismo exige que o Estado assuma, em palavras e atos, que somos um país racista que precisa deixar de sê-lo. Inventaram a expressão “racismo cordial” para naturalizar e banalizar o racismo estrutural da sociedade brasileira. Como um crime do quilate do racismo pode ser cordial? Cá entre nós, é coisa de “sinhozinho”. Cabe ao governo lançar as bases de um Estado anti-racista, ampliando sua sede de justiça, explicitada no Fome Zero, e elevando à condição de política de Estado (que é diferente de política de governo) a perspectiva anti-racista.
O racismo, ao contrário do que muita gente alardeia, não é o mesmo que miséria ou pobreza. Discriminação, preconceito e opressão de classe são DIFERENTES de discriminação, preconceito e opressão de gênero ou de raça/etnia. Cada uma possui dinâmicas de surgimento e de operacionalidade que lhes são peculiares, logo nenhuma se funde, ou se confunde, com a outra, embora possam ser reforçadas quando se abatem sobre a mesma pessoa. Cada uma exige políticas específicas adequadas. Urge que o governo entenda, por sensibilidade ou por dever de ofício, que políticas universalistas são insuficientes para abolir o racismo. E seja determinado e lance as bases de uma revolução cultural que ressoe nos usos e costumes, nos mitos e nos ritos que sustentam o racismo.
Mas voltando ao “Livro de Passes”, que traduz cidadania de categoria inferior, obrigatório para sul-africanos negros no apartheid e que os palestinos também são obrigados a portar, digo que aqui há um “Livro de Passes” para negros (a cor da pele), invisibilizado pelos brancos, quando lhes convém, mas presente e poderoso para quem o carrega. A prova? Falar em acesso de negros à universidade é coisa proibida e herética. É falar, e esperar impropérios do tipo: “nem todo mundo precisa ser ou vai ser doutor. Então, por que todo negro precisa ir para a universidade?”
Como vêm, não há jeito de entabular uma conversa civilizada com partidários da segregação racial nas escolas. Não se trata de que todo mundo, obrigatoriamente, tem de fazer um “curso superior”, mas que quem desejar não deverá encontrar entraves de natureza racista. Um ministro da educação de FHC, disse, sem tremer a cara, que “primeiro, os negros têm de fazer o segundo grau”! Entrou de “sola” e tentou “passar o rodo” no debate, dizendo que queríamos entrar na universidade sem terminar o segundo grau! Eis uma má-fé racista de nascença, parida das entranhas da Casa Grande.
Agora, há uma difusa, porém profunda, indignação, e até corrida à Justiça, contra as “cotas do Rio”! Estou perdendo “as oiças” de tanto ouvir: “O que você diz sobre essa coisa feia lá do Rio?” Se referem à implantação simultânea das cotas para egressos de escolas públicas e para negros nas Universidades Estaduais do Rio e da Bahia. Constata-se dificuldades (para alguns, erros) deliberadas e inesperadas, na implementação de duas cotas distintas? Dificuldades devem ser superadas e não elevadas a “O” argumento imbatível para afirmar que “cota de negros” é racismo às avessas, portanto “negros, contenham-se!”
As “cotas” ganharam espaços nobres na mídia e rearticularam a guetizadora máxima: “cada macaco no seu galho”. Pretendem nos acuar. E ainda tripudiam. Esquecem (será?) que para acabar com a figura do “excedente”, desde 1968 o vestibular passou de seletivo a classificatório. Sem delongas, retiremos a viseira. Aptidão para a universidade é concluir o segundo grau. O vestibular – arapuca caindo de podre, expressa a falta de vagas para quem está apto para a universidade – será abolido quando as vagas absorverem a demanda, quando então ao ensino privado de 3º. grau será reservado o papel de complementar do ensino público. Chegaremos lá com o fuzuê gerado pelas “cotas”.
Classificação, desde sempre, é um critério arbitrário, no qual cabe, desde maiores notas às cotas para oriundos de escola pública e para negros. E qualquer coisa tida como pertinente. Há algo mais pertinente do que incluir reparação pelos crimes da escravidão? “Os contra”, inocentes úteis de certos magnatas de universidades privadas, desfraldando a bandeira rota e esfarrapada de uma meritocracia vulgar e excludente, só falam na “feiúra” (uma suposta falta de mérito) da “cota dos negros”, sequer mencionam a “dos egressos de escolas públicas”! Afinal, o que é mérito? Um conceito cultural e subjetivo. Queremos, porque temos o direito, compartilhar com os brancos seus privilégios seculares. Transpor as soleiras da universidade é apenas um deles. E não nos faltam méritos para tanto.
Nossos méritos vêem de longe. Há algo mais meritório do que construir um país no lombo? Nos devem um país e ousam nos negar acesso e permanência na universidade pública! Compactuar de tamanha injustiça é optar pelo racismo e quem não a enfrenta, é cúmplice. É improvável um país chegar a um futuro grandioso quando metade do povo está acuado pelo racismo. Superar o racismo é uma questão estratégica para o Brasil, logo não pode ser apenas um assunto dos negros, o que indica que órgãos de governo e políticas públicas para combate ao racismo não podem ser minimalistas e nem reedições de guetos.
Fátima Oliveira escreve no Magazine às quartas-feiras.
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