Eugênio Mendes, autor do livro "As Redes de Atenção Primária à Saúde", diz que, apesar do sistema de saúde brasileiro ter o modelo público universal, ele está se tornando, cada vez mais, parecido com o dos EUA, que une altos gastos e ineficáciana revista FH via Saúde Web
"Políticas públicas exclusivas para pobres são políticas pobres". A frase de William Beveridge aponta o desafio do financiamento do Sistema Único de Saúde (SUS), cujo modelo foi justamente inspirado nos princípios beveridianos da universalidade da saúde. Quem o cita é o ex- consultor da Organização Pan- Americana da Saúde (OPAS), Eugênio Vilaça Mendes para exemplificar a importância do recurso para o sistema de saúde e o desafio do modelo. "Se não desatar o nó do financiamento do SUS, o Brasil caminhará para a segmentação e teremos muitos problemas pela frente à semelhança dos EUA", afirma.
Dentista de formação e com especialização em planejamento de saúde, Mendes trabalhou por 11 anos junto à OPAS/OMS na área de desenvolvimento de sistemas e serviços de saúde, onde teve acesso aos modelos de saúde de vários países. Mineiro e morador de Belo Horizonte (MG), hoje, atua como consultor de saúde pública. Por telefone, de sua casa em BH, ele conversou com FH, e os principais trechos da entrevista você confere a seguir.
FH: O SUS é uma conquista para o Brasil. Se por um lado o sistema de saúde universal é admirado e até comparado aos modelos de saúde da Europa, temos um sistema de saúde suplementar que se aproxima cada vez mais do norte-americano quando se compara o aumento da especialização. Na América Latina, temos o exemplo da colombiano e o chileno. Qual é o caminho que o Brasil poderá seguir?
Eugênio Vilaça Mendes:
Na realidade, na experiência internacional existem dois grandes modelos. Um deles é o sistema público universal, presente em vários países e caracterizado pelo Estado provedor de ampla carteira de serviços públicos. Essa provisão pode ser feita por meio de impostos gerais, é o chamado modelo beveridgiano (William Beveridge). Ele está no Canadá, Dinamarca, Espanha, Portugal, Suécia, Reino Unido, Itália e Noruega. Tem outro grupo de sistema público universal que é o bismarckiano (Otto Leopold Edvard von Bismarck), que surgiu na Alemanha e está também na França e Holanda. Ele é provido, fundamentalmente, por seguro público universal. São esses modelos que são presentes em quase toda a Europa e Canadá.
Por exemplo, no modelo universal público no Canadá, o que o governo puder prover gratuitamente, o setor privado compete com o estado. No modelo público universal, o estado é efetivo, porque só pode ir ao sistema privado adquirir certos serviços que o público não oferece.
Também temos o segmentado e um exemplo dele é o americano. Lá existem modelos distintos são sistemas substitutivos não complementares. Existe o Medicaid, para os pobres, e o Medicare para os idosos, e as operadoras de planos privados, que são responsáveis pela maior parte da saúde, e como no Brasil são pessoas vinculadas às empresas ou a família adquire um plano privado.
Esses são os dois modelos mais claramente definidos no mundo. Em função dos problemas que o modelo segmentado tem nos Estados Unidos, alguns especialistas como Alain Enthoven, desenvolveram uma terceira via: a management competion, ou competição gerenciada. Nesse modelo há dupla competição, o estado disputa com o setor privado enquanto operadoras competem também pelo serviço. Ele foi testado na Colômbia e alguns desses fundamentos foi aplicado no Chile. Enfim, existe dois modelos com muitos anos e avaliações desta proposta. Na Colômbia, onde ele foi mais elaborado e testado, o sistema está em uma crise fortíssima.
FH: Como você definiria o modelo do Brasil?
Mendes: São essas as três alternativas, no Brasil foi pensado e discutido que o espírito da Constituição é de um modelo universal público. Na época de concepção, nosso sistema foi influenciado pelo modelo italiano – o beveridgiano. Mas na prática social, ao longo do tempo, por algumas razões, mas fundamentalmente pelo financiamento, o nosso modelo vem se inspirando fortemente no modelo americano e transformando-se gradativamente em segmentado. Hoje no Brasil temos um sistema de saúde com três segmentos: o SUS- que é chamado de sistema único de saúde, mas na verdade é o único de saúde pública e dois privados: o sistema de saúde suplementar, com cerca de 45 milhões de pessoas vinculadas a operadoras de saúde e o terceiro sistema, pessoas ou famílias que tiram o dinheiro do bolso, sem intermediação de plano privado, e vão a farmácia, compram consulta médica, atendimento e vão aos hospitais. No Brasil, esse sistema de desembolso direto, particular, tem recurso maior do que o da operadora.
FH: Mas o SUS é para todos.
Mendes: Quase todos os brasileiros vão ao SUS, porque ele controla a qualidade de medicamentos, qualidade da água, das vacinas e etc. Mas quase todos brasileiros também vão ao sistema do desembolso direto, e o mais grave em relação à proporção da renda é que quem mais usa o sistema público, em percentuais da renda, são os mais pobres. O sistema segmentado tem essa característica da iniquidade. Nos EUA, 50 milhões de americanos não tem cobertura. Temos essas três alternativas. Mas eu acho que se não desatar o nó do financiamento do SUS, o Brasil caminhará para a segmentação e teremos muitos problemas pela frente à semelhança dos Estados Unidos, hoje. Nós seremos amanhã o EUA de hoje. Com uma pequena diferença, que os Estados Unidos emitem dólar e nós não.
FH: Você disse que se não resolvermos a situação do financiamento do SUS seremos os Estados Unidos amanhã. Como desatar esse nó?
Mendes: É um nó difícil de desatar porque evidências mostram que quando se segmenta o sistema é o grupo dos pobres que será sempre subfinanciado. Tem uma frase do William Beveridge, ele previu isso em 1942, que 'políticas públicas exclusivas para pobres são políticas pobres´. Isto é, quando se segmenta, o sistema do pobre tem muito menos dinheiro que o dos ricos e a razão é de que os pobres tem pouca capacidade de organizar seus interesses e de colocá-los na arena política. Apesar do SUS ser o único sistema para mais de 150 milhões de brasileiros, esses são os 150 milhões mais pobres. É uma massa que corresponde a 75% da população e não consegue articular seus interesses dentro do Congresso Nacional para por mais dinheiro no SUS.
No sistema americano, por exemplo, o Medicaid tem menos dinheiro que o Medicare. Porque no medicaid só tem pobre e no Medicare você tem idosos de todas as classes sociais que pressionam fortemente o governo.
FH: Então também é uma questão de cidadania?
De exercer o direito de cidadão?
Mendes: É, mas as classes mais baixas da população tem mais dificuldade. Veja a diferença de discutir o orçamento de um sistema público universal no Reino Unido, na Suécia e no Canadá. O congressista desses países está discutindo não só o sistema do pobre, ele está discutindo a saúde do pobre e a dele, da filha e da esposa. O congressista brasileiro tem um sistema caro e financiado pela população no geral. O do Senado, por exemplo, é um escandalo por conta dos privilégios. É um sistema financiado pelo dinheiro público, ou seja, pelo conjunto da sociedade e, portanto, pelos mais pobres. Aquele senador não está votando o sistema dele, está votando o recurso para o pobre, o dele já está garantido, pois ele tem um separado.
FH: Existe um estudo que compare o quanto mais caro é para uma operadora quando ela age centrada na especialidade do que num programa de atenção primária, por exemplo? Seria uma espécie de programa de saúde da família, só que voltado apenas para própria companhia?
Mendes: Eu não conheço um dado para o Brasil. O que posso dizer é que utilizando o modelo americano como exemplo, em 2009, os Estados Unidos gastavam US$ 7290 per capita, enquanto o Reino Unido gastava U$ 2992 e o Canadá gastava U$3895, ou seja, os Estados Unidos gastam o dobro. Uma pesquisa da Cornwell´Fund compara os EUA com Austrália, Canadá, Alemanha, Holanda, Nova Zelândia e Reino Unido, ou seja, países onde há o sistema público universal. Os Estados Unidos apesar de ter o dobro do Reino Unido em gasto, era o pior dos sete em vários itens. Isso se deve, fundamentalmente, à ausência de atenção primária. Os EUA gastam mais que o dobro de que todos os países e é o último lugar em quase todos os itens como segurança, acesso, equidade e etc. Esse modelo é que estamos trazendo dos Estados Unidos e ele é caro porrque falta a coordenação do cuidado. Nos EUA, você tem dois livros recentes e que eu recomendo: publicado em 2008, "Overtreated", de Shannon Brownlee e o "Overdiagnosed", de Gilbert Welch. Uma síntese destes livros e principalmente o "Overtreated" seria: os Estados Unidos gastam com internações médicas desnecessárias de 30 a 50% dos gastos totais de saúde, em torno de 700 bilhões de dólares anuais, e esses procedimentos injustificáveis respondem por 30 mil mortes a cada ano. Faz- se excesso do diagnóstico e tratamento. Isso não quer dizer que a ressonância magnética, por exemplo, não é importante, mas o uso excessivo disto leva a mais tratamentos desnecessários.
FH: A rede é um sistema? Como definir a rede?
Mendes: A rede é um sistema inteiro que se desenvolve em cinco componentes: atenção primária que coordena a rede, que vincula a população; atenção secundária, os ambulatórios especializados e os hospitais de média e alta complexidade; os sistemas logísticos, regulação, transporte sanitário, registro eletrônico em saúde; e os de apoio,- assistência farmacêutica, apoio diagnóstico terapêutico. Esse conjunto todo está em rede com um sistema de governança. Não se integra só a atenção primária com o laboratório e com o hospital, mas também com o centro de imagem, farmácia e etc. Mas para isso é preciso certo sistema logístico: prontuário eletrônico, que circule em toda a parte do sistema e inteligência reguladora, essa é ideia de rede e o Brasil não tem nada disso.
FH: Como a tecnologia pode auxiliar as Redes de Atenção Primária?
Mendes: É fundamental porque para atenção primária funcionar ela tem que ser responsável por toda a rede vinculando toda população. Na atenção primária tem que ter toda a população cadastrada nas unidades familiares e isso é muito difícil fazer sem prontuário eletrônico e sem o registro eletrônico de saúde. E não basta cadastrar as famílias, tem que cadastrar os hipertensos, por exemplo, e estratificar por risco todos os portadores de condições crônicas. Quando se trabalha com boa atenção primária se trabalha o médio e baixo riscos e só se beneficiam de especialistas os 25% dos hipertensos que tem alto ou muito alto risco, de baixo e médio não devem ir aos especialistas, pois ele intervém muito e gera iatrogenia, pois o especialistas tem uma clinica diferenciada, voltada à doença. Vai criando um acorde de tal sofisticação que o modelo de condição crônica sem o sistema de informação eletrônica não opera. Essa é a ruptura que precisa ser feita no setor público e no privado.
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