Ercília Macedo-Eckel (*)
Se o sujeito tem boa memória e suas pernas
andam,
fazer 90 anos
é a coisa mais natural do mundo. Bibi
Ferreira, no Teatro Frei Caneca, São Paulo, 2012.
Como
elaborei meus envelhecimentos? A partir de cuidados físicos e com a saúde, bem
antes do organismo acelerar sua decadência. Por volta dos 45/47 anos. Revi
atitudes, comportamentos, valores individuais e substitui certezas antigas por
probabilidades a curto prazo. Experimento: a dimensão existencial do encontro
profundo comigo mesma, a relação com o tempo, a avaliação dos relacionamentos
travados e construídos durante toda a minha vida. O envelhecimento psicológico
coincide com a maturidade psíquica. Em mim é um processo quase imperceptível,
pois busco o autoconhecimento e procuro dar um sentido para minha vida, superar
conflitos do cotidiano e aceitar a realidade por mais dura que ela seja.
O envelhecimento não é determinado pela idade cronológica, mas pela
idade funcional, pela (in)dependência física e pela (in)capacidade para
administrar a própria vida. Importante também é a integração do idoso no
contexto social e cultural de sua época e nas diferentes gerações. Uma vez que
a sociedade preconiza a longevidade, mas nega aos velhos sua importância
social, seu real valor, por estarem fora do padrão de consumo, com a validade
vencida. Os idosos deveriam reagir contra esses estereótipos negativos e
ridicularizadores; não se reconhecerem como indesejáveis, imprestáveis, um peso
para a comunidade, uma mala sem alça. Muitos de nós temem levantar essa
bandeira por não quererem parecer velhos e encrenqueiros. Ou, mais grave ainda,
por se verem realmente como inúteis, acabam aceitando o preconceito – igual ou
pior que o de cor, pois eles não têm “cotas”.
O ancião ou anciã pode até pagar o smartphone mais caro e mais moderno
do mercado para um jovem. Mas quem faz a propaganda na mídia? Os editores,
lojistas, estilistas, homens e mulheres de negócio deveriam olhar mais demoradamente
na direção do consumidor de cabelos brancos (tingidos ou não) e contemplá-lo
com mimos e produtos diversos. Muitos de nós, anciãos, estão doidos para abrir
a bolsa, gastar, mexer-se, viver bem e saudavelmente por longos anos. Basta que
os produtores de bens e serviços nos enxerguem para ampliar seus lucros.
Na minha “professoralidade” de aposentada, defendo o exercício do ócio
sem culpa para os velhos. Ócio criativo, versátil, dinâmico, ativo - como
jardinagem, dança, viagens, atividades em clubes, academias e outros – além da
ociosidade imóvel, estática ou quase, -
como leitura, pintura, audição de uma boa música, conexão com a
internet, televisão, uma conversa interessante, etc. Alguns desses ócios
acompanham meus envelhecimentos e fecham o ciclo de minha vida, com mudanças
paulatinas e constantes, cheias de significados do que fui. E exigindo
redefinição de minha identidade presente, do que sou, olhando para o futuro, do
que serei, embora o horizonte me pareça curto, pelo avançar de meus anos.
Pessoalmente, não me preocupei tanto com a diversidade do ócio ativo ou imóvel,
não busquei caminhos muito distantes dos professorais ao me aposentar, porque
escrevo e publico desde 1968. Investi nessa direção, próxima do magistério.
Entretanto isso não me impede de cuidar das plantas e árvores de meu quintal,
renovando os espaços e retomando o primeiro estágio de minha existência na
fazenda. Meio pública, meio privada (“aposento”: aposentada), ainda continuo
sendo, graças a Deus. Continuo sendo igual a mim mesma com minha marca, minha
franqueza agressiva, minha risada extravagante. E diferente por estar em
constante mutação, em busca do novo e da inclusão, sempre.
Mas
eis que surge um cisto aqui, um nódulo ali, uma punção com agulha fina acolá. E
o tempo dolorido da espera do diagnóstico. Tempo interior de pausa, de silêncio
e de reflexão. E tempo exterior de corre-corre pra ontem, de carreatas e
buzinaços eleitorais, de ausência de ideias, de consulta médica sem apalpação e
excesso de tecnicismo. E tempo de cirurgia. E eu meio pública, meio privada.
Fiquei com meia máscara no mundo, com a vantagem de ser dona de meu próprio
tempo (por quanto tempo?) e de estar empenhada em reconstruir minha identidade,
no meu novo espaço de existência, e de decidir acerca de meu próprio destino.
Busco preservar minha saúde intelectual. Leio, leio, leio. Converso, converso,
converso. O cérebro também faz parte daquelas áreas sobre as quais se diz: “usa
ou atrofia”. Quanto menos o usamos, maior a degenerescência. O meu sempre
trabalhou bastante e com satisfatória exatidão, na fabricação de pensamentos,
emoções, lembranças e preocupações. Entretanto, ultimamente, tenho percebido
vagareza mental em absorver informações novas e sinais de declínio da memória,
pelas falhas momentâneas e pelas rasteiras que ela (memória) me dá, quando eu
mais preciso de credibilidade.
Finalmente, caminho, caminho e caminho sobre uma ponte cuja largura se
estreita ou diminui à proporção que aumenta a idade de quem a atravessa. À proporção
que as células envelhecidas, determinadas pelos genes, já não se entendem, ou
os telômeros ficam cada vez mais curtos, até que essas mesmas células parem de
se dividir. Infelizmente o autorreparo do corpo diminui com a idade, com o gasto.
E
no percurso dessa ponte já não me preocupo tanto em agradar a todo mundo. Posso
ser excêntrica sem ser ridícula e esperar que algumas pessoas gostem de mim do
jeito que sou, com alguma dificuldade de compreender o nós (eu e tu ou eu e você) para relações mais profundas. Aprendi a
viver sozinha desde criança na fazenda de meus avós. Não os acompanhava em
tarefas rurais. Ficava com meu gato mourisco, deitada na calçada do pátio
menor, em frente ao pé de hibisco, olhando para os carneirinhos que as nuvens
formavam. A planta mencionada, cujas flores simples exibiam um vermelho vivo,
recebia todo o esterco do pátio maior e era muito cuidada por todos, uma vez
que tais flores, quando esmagadas sobre o couro, deixavam os sapatos lustrosos
e brilhantes para a montaria rumo à igrejinha rural da União, ou para a viagem
de volta à cidade de Goiás, no final das férias escolares.
Como disse há pouco, aprendi a viver sozinha desde criança. Esse
aprendizado consiste em um exercício de auto-afirmação, de identidade e de ser
mais pessoa, à medida que o tempo avança e chega a velhice. Porém duro é
entender e aceitar a morte. A minha e a de outras pessoas que já se foram –
presentes nos álbuns fotográficos e deletadas
nas agendas telefônicas e nas redes sociais. Minhas reflexões já longe das
cenas, das experiências vividas, dos sucessos e fracassos compreendidos e
aceitos – levam-me a uma identidade reforçada, singular e única nesse meu viver
também singular e único, desde criança.
Percebi que cada pessoa tem seu modo de envelhecer, de viver a última
etapa do ciclo da existência. Sozinha ou com a família, casada ou solteira,
viúva ou divorciada, na cidade ou no campo. O importante é que essa pessoa não
se sinta marginalizada e esteja dentro de um novo conceito de velhice que não
aceita tornar-se refém de parentes exploradores, ou ser vítima de maus-tratos e
de violência camuflada ou explícita. Aliás, aprender a envelhecer deve começar
na infância, pelo exemplo da família, integrando as gerações. A maior lição de
envelhecimento eu tive com minha avó materna e que me criou. Infelizmente ela
não experimentou a morte digna que merecia. Observo que feliz é o velho que não
perdeu a sua individualidade, auto-estima, privacidade e capacidade de se cuidar.
E que é meio camaleão para se adaptar e lidar com novas situações e mudanças
nos papéis familiares e sociais. Aqui se incluem lutos e perdas diversas, com
diferentes graus de sofrimento. Ficamos tristes, quando perdemos amigos,
parceiros, parentes e até um animalzinho de estimação. Também há várias
mudanças de rumo em nossas vidas – de casa, de cidade, de emprego, de amor, de
hábitos e, quem sabe, até de crença, de valores ou de princípios. Com o avanço
do tempo vamos sofrendo diferentes lutos e perdas. Diferentes culpas. Por que
fiz ou deixei de fazer, disse ou deixei de dizer isso ou aquilo? Outras vezes
sentimos raiva. Por que fulano ou sicrana nos deixou? Lá do fundo de mim vem a
voz: Você pensa que controla tudo, hem? Até a morte, não é sua poderosa?
Cuidado. Ela (morte) pode estar pertinho de você, brincando de chicotinho
queimado.
Ainda sobrevivo aos vários e diferentes lutos por que passei – muitos
deles por pessoas vivas – porém sofro por antecipação meu próprio luto. Como
dizia Hebe Camargo: “Não tenho medo da morte. Tenho é peninha de morrer. A vida
que tenho é tão boa, com meus amigos, meus bichos lindos”. O tempo está
escasso, cada vez mais curto. O passado já se foi, o futuro é uma interrogação.
Minha realidade é o presente, o hoje, o agora.
Para
me inserir nessa realidade preciso desmistificar de vez a internet,
atualizar-me diariamente, conectar-me com as pessoas e com o mundo –
desenvolver novas competências interdisciplinares. Por isso acompanho as
notícias em diversas mídias, vou a eventos, dou opinião sobre vários assuntos.
Minha visão de idoso contraria a cartilha ocidental que preconiza seu
isolamento e inutilidade, diante das novas gerações e do contexto histórico,
profissional e social. Por outro lado, meu corpo narra minha história, minha
longa experiência de vida. As rugas e o crepom da pele em minhas mãos, em meus
braços fazem parte de mim. Porém, quando as linhas de meu rosto assustam o
olhar mais exigente, ou me incomodam diante do espelho, faço discretas
intervenções. Ninguém merece se defrontar com o feio, em tempo de
rejuvenescimento com laser. A decisão é pessoal, lembrando-me de que a mente
deve estar em primeiro lugar na manutenção de minha imagem, de minha
identidade. Belo, feio, velho e uma pergunta instigante: Pode o belo estar
presente em um velho corpo, fora dos padrões da mídia? Tudo é possível. De
tempo em tempo, os jovens usam caveiras como adorno, evocam a temática
repulsiva de Augusto dos Anjos e marcam encontros em cemitérios.
As mudanças fisiológicas, psicológicas e
sociais por que passa o idoso não são sinais de doença. Fazem parte do processo
de envelhecimento de quem não morreu antes disso. Idoso, no sentido de tempo
vivido, não significa obrigatoriamente obsoleto, ultrapassado, fora de moda, ou
inútil. E onde começa a velhice, você sabe? Aos 60/65 anos? Não consegui
marcadores precisos. Nem mesmo a menopausa e andropausa estabelecem a fronteira
exata. Esse limite não depende apenas da idade cronológica. Depende também do
gênero, das condições físicas, psicológicas e mentais; da classe social,
cultural e do nível de dependência de quem está ultrapassando ou já ultrapassou
a fronteira do envelhecimento.
O tempo urge. Estou vivendo para quê? Que funções inda posso exercer no
mundo?
Goiânia, 1º de outubro de 2012 – Dia do Idoso.
(*) Ercília Macedo de Morais Eckel (Palmeiras de Goiás, 20 de fevereiro de 1937), é uma grande amiga, professora e escritora brasileira.
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