recebi da Carmen Ribeiro por email
Gastão
Wagner de Sousa Campos – professor titular de Saúde Coletiva da FCM/UNICAMP.
17 de
julho de 2013.
O
programa “Mais Médicos” apresentado pelo governo federal é uma tentativa de
responder ao movimento social dos últimos meses. O projeto tem quatro propostas
principais que objetivariam melhor a qualidade da política pública de saúde e
do SUS.
Essa
iniciativa levanta temas que merecessem apoio, mas, ao mesmo tempo, traz vários
aspectos que não deverão ser apoiados por aqueles interessados no bem-estar dos
brasileiros.
Merece nosso apoio o propósito de “contratar” 10 000 médicos para a rede de
atenção básica (primária), particularmente, em postos localizados em regiões de
grande vulnerabilidade social e sanitária, tanto em municípios pequenos ou
médios quanto na periferia dos grandes centros. A extensão da atenção primária
à saúde em geral, e da Estratégia de Saúde da Família, para mais de 90% dos
brasileiros, nunca foi assumida como meta por nenhum governo federal ou
estadual. Vários políticos haviam desistido da Saúde da Família, haviam se
encantado com a substituição desse modelo pela demagogia das Unidades de Pronto
Atendimento. Então, louvor ao propósito do governo federal de apoiar os
municípios para provimento de médicos.
Entretanto,
não merece nosso apoio a forma de “contrato” indicada pelo governo. Em
realidade, é um contrato ilegal e as condições de recrutamento parecem
inventadas para “espantar” os eventuais candidatos. Primeiro, porque se trata
de um “contrato” provisório, três anos, prorrogáveis por mais três. O que
significa que os médicos deverão deixar todas suas atividades – plantões,
consultórios, etc. – para algo que terminará e o deixará com uma mão à frente e
outra atrás. O governo federal dá um péssimo exemplo ao insistir em recrutar
pessoal de maneira canhestra, a margem da lei, sem segurança ao profissional.
As contratações precárias são um dos principais problemas do SUS hoje. Por que
não propor uma carreira para os médicos da atenção básica? Uma carreira do SUS,
com cofinanciamento da União, estados e municípios. Fazer concursos por estado
da federação. Criar um interstício de cinco anos em que o médico estaria
obrigado em permanecer no posto. Depois, antes de outro concurso, ele poderia escolher
outra localidade ou outro posto. Como ocorre com juízes e promotores, há
município sem juiz? A queixa das entidades médicas em relação ao modelo de
contratação tem sentido e conduzirá o programa ao fracasso. Além do mais já é
hora de criar-se uma política de pessoal decente para o SUS. Temos recursos e
proposições factíveis que combinam a cobrança de responsabilidade sanitária,
para médicos e outros profissionais, com autonomia profissional.
Merece
ainda nosso apoio a preocupação com a formação dos médicos segundo métodos
empregados em países com sistemas públicos de saúde, no caso, aumentando
estágio na atenção primária ou básica. Merece também nosso elogio a decisão de
recrutar uma parte dos médicos da atenção básica segundo normativas
compulsórias ou estratégias de indução. Todos os países do mundo têm
dificuldade para compor médicos para a atenção primária.
Entretanto, não tem cabimento racional estender-se o curso de medicina para
oito anos! O necessário será realizar-se reforma do ensino médico, objetivando
formar médicos com formação geral, em clínica e em saúde pública, com estágios
práticos em todos os serviços do sistema, inclusive na atenção básica.
Ao
invés de acrescentar-se mais dois anos ao já longo curso de graduação seria
muito mais simples obrigar que todas as residências, de todas as
especialidades, realizassem todo o primeiro ano em unidades básicas de saúde.
Nesse caso, durante esse ano, as bolsas de residência seriam aumentadas segundo
o piso inicial da carreira dos médicos da atenção básica. Óbvio que com
supervisão de professores no local e à distância, por meio das Universidades
responsáveis pelos cursos de residência. Para isto, bastaria que MEC e
Ministério da Saúde apenas alterassem as normas da residência médica e teríamos
esses dois objetivos atendidos: tanto o de melhorar a formação dos médicos,
reforçando o caráter integral e humanista, afinal médico lida com gente e não
com máquinas, quanto garantindo que entre sete e dez mil médicos, no primeiro
ano de residência, estariam na atenção básica, de preferência nas localidades
com alta vulnerabilidade. Vale lembrar que, em torno de 90% das bolsas de
residentes, são de origem pública. União e estados da federação.
Merece ainda nosso apoio, a ampliação, em torno de dez mil novas vagas, para
residência. Particularmente se forem priorizadas residências para médicos de
saúde da família e comunidade (generalistas, especializados em atenção
primária) e outros especialistas em falta no SUS: anestesistas, psiquiatras,
oncologistas, pediatras, entre outros.
Entretanto,
não tem cabimento a proposta de ampliarem-se dez mil vagas para graduação
médica. O Brasil tem 1,8 médicos por mil habitantes; o Canadá, 1,7; a
Inglaterra, 2,4; com mais dez mil médicos se formando ao ano, em menos de uma
década, teríamos um número excessivo de médicos. Elemento danoso conforme
demonstram caso dos EUA e de Cuba.
Entretanto, de fato, necessitamos de mais médicos, mais vagas nas Faculdades de
Medicina, não entre dez a onze mil; mas algo entre três e quatro mil vagas.
Nesse caso, o governo e o SUS deveriam apoiar a ampliação da rede de Faculdades
Públicas, não há porque estimular a abertura de escolas privadas.
Resta-nos
a intenção governamental de “importar” médicos estrangeiros no caso de
brasileiros não preencherem a cota necessária. Caso se adotasse a proposta de
realizar-se o primeiro ano de residência, em todas as especialidades, na
atenção primária, seriam de sete a dez médicos a mais na rede básica! Bem,
ainda tendo em vista o modelo de contratação já criticado, parece-nos que a
inevitabilidade destas contratações é determinada muito mais pela falta de
carreira e possibilidade de remanejamento e promoção ao longo dos anos, do que
a outros fatores. Por outro lado, o subfinanciamento crônico do SUS e estímulos
fiscais à medicina de mercado fizeram com que, para atender aos 25% de
brasileiros com seguro privado, tenhamos 54% dos recursos financeiros gastos em
saúde. Isto induziu uma distribuição de médicos distorcida, quase 55% da
capacidade de atendimento médico é absorvida pelo setor privado.
Falta SUS, portanto.
O
Brasil escolheu o “direito universal à saúde” quando elaboramos nossa
Constituição. Trata-se de um princípio de natureza ética, moral, que se
transformou em lei. Nossa Lei Maior responsabilizou o Estado e a sociedade pela
transformação desse valor abstrato em realidade. Indicou ainda um modelo
organizacional para dar concretude a essa aspiração: o SUS.
Falta enfrentar o entrave do subfinanciamento, calcula-se que seria necessário
dobrar os gastos com o SUS. De 3,6% do PIB chegar-se a mais de 7%. Falta
eliminar o incentivo fiscal e os repasses de orçamento público ao setor
privado, cálculos indicam que seriam injetados mais de 20 bilhões de reais no
SUS ao ano se isto acontecesse.
Falta
realizarmos uma radical reforma do modelo de funcionamento da assistência à
saúde em geral e da assistência médica em particular. O SUS é uma adaptação
tupiniquim da tradição dos Sistemas Públicos e Universais de Saúde que surgiram
na Europa a partir da segunda metade do século XX. Estes países inventaram a
atenção primária com base em médicos e enfermeiros generalistas, encarregados
do atendimento clínico e preventivo de toda a população e não somente dos
pobres. Os hospitais e especialistas funcionam articulados, integrados, em rede
com a atenção primária. Os serviços de urgência e de saúde coletiva são
complementares.
Falta
prosseguir na reforma administrativa e do modelo de gestão do SUS. O SUS está
fragmentado, dividido, com políticas e programas diferentes conforme o governo,
conforme seja da União, dos estados ou dos municípios. O SUS está dividido
entre atenção primária, hospitais, ambulatórios, urgência, saúde mental, etc. O
SUS está sendo estraçalhado entre serviços públicos, organizações sociais,
fundações, entidades filantrópicas, uma Babel em que não há solução gerencial
mágica. O SUS sofre com as mesmas mazelas do Estado brasileiro: ineficiência,
privatização de interesses, clientelismo, burocratização. Precisamos, urgente,
de uma reforma do modelo de gestão que diminua o poder discricionário do poder
executivo e que assegure sustentabilidade e continuidade ao SUS.
Falta,
vale insistir, uma ampla e generosa política de pessoal: repensar a formação,
carreiras com responsabilidade, condições de trabalho adequadas, e educação
permanente.
O
Brasil precisa do SUS.
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