Todos ficamos cabisbaixos e assistimos atônitos à saída escoltada de Randall Patrick McMurphy, personagem interpretada magistralmente por Jack Nicholson em ‘Um estranho no ninho?’ (1975), rumo à cela de lobotomia. Dói saber que o manicômio já não precisa de grades ou mesmo paredes. Por Flávio Ricardo Vassoler
Flávio Ricardo Vassoler* na Carta Maior
Você já se sentiu ‘Um estranho no ninho?’ O filme de 1975 dirigido por Milos Forman arregimenta uma legião de (in)adaptados – personagens e espectadores – para uma reflexão sobre as muitas afinidades eletivas entre a normalidade e a patologia, o cotidiano e o caos.
Randall Patrick McMurphy, personagem interpretada magistralmente por Jack Nicholson, reitera a pergunta acima prescrita pelo mal-estar da civilização:
− Você já se sentiu um estranho no ninho? Isto é, você já chegou a pensar, sentir ou intuir que as margens que delimitam o fluxo de nosso cotidiano não possuem racionalidade alguma para além da regulação e reprodução autoritárias da sociedade? Para sermos mais específicos, vale dizer, para sofrermos de forma mais rente aos aguilhões enferrujados que nos põem em marcha a cada segunda-feira: que tal trabalhar mais de 10 horas diárias com atividades que sequer remotamente dizem respeito às suas aspirações mais próprias? Que dizer quando passamos de duas a quatro horas diárias no trânsito por conta da usurpação privada do espaço público? (As montadoras de automóveis vão muito bem, obrigado.) E quanto ao medo e à desconfiança que sentimos quando conhecemos uma nova pessoa que, talvez, e não mais do que talvez, venha a se transformar no grande amor? O outro parece culpado até que se prove o contrário.
O irrequieto R. P. McMurphy continua a (nos) interpelar:
− Você já reparou que a classificação de patologias psíquicas vem aumentando sobremaneira? São siglas e mais siglas para nos enquadrar – e medicar. TOC, Transtorno Obsessivo-Compulsivo; TDAH, Transtorno de Deficit de Atenção e Hiperatividade; SP, Síndrome do Pânico; TP, Transtorno Bipolar. Diante da voracidade com que o braço psiquiátrico da indústria farmacêutica nos veste com a camisa de força de suas prescrições, as mulheres (e os homens sequiosos...) não mais precisam se preocupar com a inofensiva e apenas mensal TPM.
Faço as vezes de McMurphy para perguntar ao leitor e à leitora:
− Você já teve medo de perder o emprego? Ou pior: para manter o frágil emprego, você trabalha com o bafejo da pressão contra a nuca? Ou ainda pior: faz tempo que você está desempregado? Você confia em sua (seu) namorada(o)? Ou pior: você pode confiar em sua (seu) namorada(o)? Ou ainda pior: você acredita que relações mais duradouras ainda tenham sobrevida? Você sequer considerou sua vocação ao “escolher” o seu trabalho? Ou pior: você sequer pôde considerar sua vocação ao ser arregimentado por seu trabalho? Ou ainda pior: você ao menos tem registro em sua CTPS, Carteira de Trabalho e Previdência Social?
Se levarmos em consideração a avalanche social – avalanche socialmente (ad)ministrada – de transtornos obsessivos e compulsivos, nossa frágil atenção reduzida a mera hiperatividade por conta da pressão e o pânico bipolar de nossas inseguranças e incertezas, será possível dizer que a recente onda farmacológica de enquadramento de nossas patologias pretende substituir a PM, o DOPS, o DOI-CODI, a CIA, a KGB e a Gestapo pelos medicamentos tarja preta. O carrasco e a cela se tornaram obsoletos. O poder faz com que introjetemos as grades. A sanidade quer controlar os mecanismos da imaginação. A indômita imaginação, um dos últimos e trêmulos resquícios de liberdade.
Pois Randall Patrick McMurphy faz com que Jack Nicholson tenha que franzir ainda mais as sobrancelhas espessas quando fica sabendo que seus colegas de manicômio estão internados voluntariamente. (R. P. McMurphy foi enviado para o manicômio judicial para que o Estado pudesse sentenciar se suas transgressões são imputáveis ou inimputáveis. No primeiro caso, o delinquente tem consciência de seus atos e deve ser escarrado em mais uma masmorra superlotada; no segundo, o louco deve ser lobotomizado e seu uniforme passará a ser uma camisa de força.)
− Mas como, vocês estão aqui por que querem?! Quer dizer que vocês podem sair daqui!? Ora, por que não vão embora, por que não se mandam, por que permanecem aqui, meu Deus?!
McMurphy parece não acreditar que o discurso da servidão voluntária de fato exista. McMurphy, o marginal a ser enquadrado como louco, já foi preso cinco vezes por agressão, além de haver em sua prolixa ficha criminal uma (suposta) tentativa de estupro e vários assaltos. O diretor do manicômio pergunta ao detento por que ele age desta forma. Mas por que você tem que ser um transgressor tão contumaz? Ainda uma vez, cedamos espaço à lucidez de Randall Patrick McMurphy:
− Ora, eu sou um agressor?! Eu sou um agressor!? Você disse que já estive preso 5 vezes por agressões? E quanto a Rocky Marciano?! O campeão dos pesos pesados já levou 4 dezenas de infelizes à lona, são 40 agressões, 40! Enquanto eu vou para a cadeia, Rocky Marciano se torna um milionário. Como é que você me explica isso, doutor, como? E mais: que história é essa de tentativa de estupro, hein? Aquela mocinha já sabia de tudo, doutor, de tudo, ela me queria, sim, ela me queria! Nenhum homem resistiria àquela coisinha rosada entre as pernas dela, doutor, nenhum! Mas como eu não agi como um vegetal, doutor, eles acham que eu sou louco!
Ora, façamos então o elogio da loucura. Não seria a depressão um sintoma salutar de que as coisas não vão bem? Senão, vejamos: depressão, a compressão dos desejos do eu, a impossibilidade social de realizá-los. (Eis o sepultamento da utopia.) “Mas não” – grita a farmacologia com o dedo em riste de sua polícia política –, “é preciso quantificar a dor, é preciso mensurá-la com os miligramas das drágeas, só assim o paciente pode voltar à normalidade”. Que diria McMurphy a este respeito?
− A normalidade normativa é consequente em sua autoridade: a tarja preta substitui a venda que o torturador hoje anacrônico outrora utilizava para cegar e amordaçar as vítimas. Afinal, é preciso voltar a trabalhar. E se você está descontente, o problema é seu, a realidade nunca está errada, não é verdade? O real nos remete ao poder do rei, ou seja, o que é, o existente, tem que ser assim e não pode ser de outra maneira, não é mesmo? E se nos sentimos mal, se sentimos pena dos indigentes cujo teto não passa de um cobertor cheio de pulgas, se sentimos náusea pela competição encarniçada que nos arremessa uns contra os outros, se desconfiamos da rotina que nos aparta dos entes e amigos queridos, se fazemos o elogio da loucura que ousa imaginar uma outra sociedade, uma sociedade outra, somos achincalhados, presos e medicados, não necessariamente nessa ordem, mas policialmente contra a desordem.
Ao fim e ao cabo, a perplexidade indômita de McMurphy se volta ainda uma vez contra a servidão voluntária de seus colegas de manicômio:
− Mas vocês têm que sair daqui, vocês jamais poderiam estar aqui, vocês têm que ir para a rua, para as ruas, as avenidas, vocês têm que dizer o que é isto aqui, vocês têm que se rebelar!
Todos ficamos cabisbaixos e assistimos atônitos à saída escoltada de McMurphy rumo à cela de lobotomia. Dói saber que o manicômio já não precisa de grades ou mesmo paredes. Ele pode se expandir e suas fronteiras vez por outra coincidem com o traçado de cidades e até mesmo países. Acaso os paulistanos não elegeram o Coronel Ubiratan Guimarães deputado estadual sob a bandeira 14.111? “Quem é o Coronel Ubiratan Guimarães?” – pergunta McMurphy parcialmente lobotomizado. Após receber o devido beneplácito do governador de São Paulo à época, o Coronel Ubiratan Guimarães comandou a invasão do antigo presídio do Carandiru pela Tropa de Choque da PM, invasão cujo saldo para a população de bem e de bens foi a erradicação de 111 detentos.
Mas, de alguma forma, ainda há espécimes como McMurphy. É bem verdade que a farmacologia tenta rastrear o genoma de sua imaginação rebelde – afinal, é preciso prever para prover –, mas, até o presente momento, o poder não conseguiu introjetar a lobotomia. Se a vigilância ainda se faz necessária, a resistência de McMurphy ainda pode insinuar o caos pelas frestas mal vedadas do cotidiano.
*Flávio Ricardo Vassoler é escritor e professor universitário. Mestre e doutorando em Teoria Literária e Literatura Comparada pela FFLCH-USP, é autor de O Evangelho segundo Talião (Editora nVersos) e organizador de Dostoiévski e Bergman: o niilismo da modernidade (Editora Intermeios). A partir do dia 02 de setembro, passará a apresentar o Espaço Heráclito, um programa de debates políticos, sociais, artísticos e filosóficos com o espírito da contradição entre as mais variadas teses e antíteses – segundas-feiras, às 19h, na TV Geração Z: www.tvgeracaoz.com.br. Periodicamente, atualiza o Subsolo das Memórias, www.subsolodasmemorias.blogspot.com, página em que posta fragmentos de seus textos literários e fotonarrativas de suas viagens pelo mundo.
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