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quarta-feira, 4 de setembro de 2013

Revisitando 1988: O SUS como direito de cidadania

Eduardo Fagnani | Teoria e Debate via Blog do CEBES 

 
Inspiração no modelo europeu de Estado de Bem Estar Social garantiu a estruturação de um sistema de proteção social universal e assim pela primeira vez, educação, saúde, previdência e amparo às pessoas desamparadas são colocados na Constituição como direitos sociais.

“A injustiça social é a negação do governo e a condenação do governo (...). Esta será a Constituição Cidadã, porque recuperará como cidadãos milhões de brasileiros. Cidadão é o usuário de bens e serviços do desenvolvimento. Isso hoje não acontece com milhões de brasileiros segregados nos guetos da perseguição social.” Ulysses Guimarães, Discursos. 1988

Neste ensaio, aprofunda-se a discussão dos pontos em comum, na questão da cidadania social. Entende-se que, quando a pressão das ruas exige “escolas, hospitais e serviços públicos com padrão Fifa”, ela está cobrando os mesmos valores inscritos na Constituição de 1988, por força das pressões das marchas anteriores.

Ao contrário de muitos países periféricos, nos anos 1980 o Brasil não transitou para o Estado mínimo. O movimento social visava acertar as contas com a ditadura militar, e não havia solo fértil no qual pudesse germinar a agenda liberalizante (Fagnani: 2005). Sob a inspiração da experiência da social-democracia europeia, a partir de meados dos anos 1970, caminhou-se no sentido de estruturar um sistema de proteção social baseado nos valores do Welfare State. Nesses regimes, a proteção é vista como parte da cidadania plena (Marshall: 1967). Os direitos sociais são para todos (universais) e regidos pelo princípio da Seguridade Social (todos têm direito, mesmo aqueles que não podem contribuir monetariamente). A redistribuição da renda pela via tributária financia os direitos daqueles que não podem contribuir (exemplos: Sistema Único de Saúde, previdência rural e Benefício de Prestação Continuada da Assistência Social). Instituiu-se a forma clássica de financiamento tripartite entre empregados, empregadores e Estado (mediante impostos gerais pagos por toda a sociedade).

Assim, pela primeira vez o Brasil passou a considerar como direitos sociais “a educação, a saúde, o trabalho, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados” (artigo 6º).

O SUS, universal e gratuito, substituiu o modelo estatal baseado na compra de serviços privados de saúde vigente na ditadura. Na previdência social, os trabalhadores rurais passaram a ter os direitos dos trabalhadores urbanos. A previdência rural passou a ser um benefício não contributivo típico da Seguridade Social. O mesmo se observa em relação ao Benefício de Prestação Continuada, voltado aos idosos pobres e aos portadores de deficiências, e ao programa Seguro-Desemprego. Para financiar a Seguridade Social (saúde, previdência, assistência social e seguro-desemprego), foi instituído o Orçamento da Seguridade Social, que segue o modelo tripartite (trabalhador, empregador e governo) clássico dos regimes de Welfare State. A participação do governo foi assegurada pela criação de duas novas fontes de financiamento: Contribuição Social sobre Lucro Líquido (CSLL) e Cofins.

A Carta também trouxe avanços na educação nacional (universal, gratuita e laica), incorporou garantias aos segmentos mais vulneráveis (idosos, portadores de deficiência, crianças e adolescentes), introduziu instrumentos inovadores para a reforma urbana e ampliou o rol dos direitos trabalhistas e sindicais (direito de greve, autonomia sindical, redução da jornada semanal de trabalho, penalização da demissão sem motivos, licença-maternidade, extensão aos trabalhadores rurais dos mesmos direitos assegurados ao trabalhador urbano, entre outros).

Mas, na disputa pela reforma agrária, as forças progressistas sofreram sua maior derrota. Por meio de manobras regimentais, a bancada ruralista conseguiu aprovar um texto dúbio, que restringiu as possibilidades de fazer cumprir a “função social” da propriedade.

Em suma, a Constituição de 1988 representou uma etapa fundamental da viabilização do projeto das reformas socialmente progressistas. Com ela, desenhou-se pela primeira vez um sistema de proteção social inspirado nos valores do Estado de Bem-Estar Social. Seu âmago são os princípios da universalidade (em contraposição à focalização exclusiva), da seguridade social (em contraposição ao seguro social) e da compreensão da questão social como um direito da cidadania (em contraposição ao assistencialismo).

Essas conquistas dos movimentos sociais das décadas de 1970-1980 estão sendo cobradas pelas marchas atuais. Falta ainda discutir o que ocorreu entre 1988 e 2013. Esse ponto será objeto dos próximos ensaios.

Referências

FAGNANI, E. Política Social no Brasil (1964-2002): entre a Cidadania e a Caridade. Tese de doutorado. Campinas: Instituto de Economia-Unicamp, 2005.

MARSHALL, T.H. Cidadania, Classe Social e Status. São Paulo: Zahar Editores, 1967.

Eduardo Fagnani é professor do Instituto de Economia da Unicamp, pesquisador do Centro de Estudos Sindicais e do Trabalho (Cesit/IE-Unicamp) e coordenador da rede Plataforma Política Social – Agenda para o Desenvolvimento

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