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quinta-feira, 24 de outubro de 2013

Como vive o povo do Bolsa Familia

No começo, eles usavam o dinheiro do Bolsa Família para comer, um direito humano básico que muitos não tinham. Depois de matada a fome, passaram a comprar remédios e, com o tempo, vieram roupas e sapatos para as crianças, escova e pasta de dente, outros produtos de higiene pessoal, eletrodomésticos, a reforma da casa e, para alguns poucos, até um carrinho velho. A Brasileiros viajou até Barra do Chapéu, no Vale do Ribeira, a cidade paulista onde mais gente recebe o Bolsa Família e mostra, nas páginas seguintes, o que mudou na vida desses brasileiros dez anos após a implantação do maior programa mundial de transferência de renda, que hoje beneficia 50 milhões de brasileiros, um quarto da nossa população



Ricardo Kotscho e Manuel Marques na revista Brasileiros


Tia Diva, A Líder: “O que mudou é que o povo agora está comendo melhor… Vem até gente aqui vender frutas e verduras…”
Aqui ninguém mais passa fome”, proclama Eduardo Vicente Valete Filliettaz (PMDB), 45 anos, o orgulhoso prefeito reeleito de Barra do Chapéu, no Vale do Ribeira, quando lhe pergunto qual foi a principal mudança provocada pelo programa nessa cidade com 5,5 mil habitantes, a 360 km da capital. É um dos municípios mais pobres do Estado e onde, proporcionalmente à população, mais gente recebe o benefício: 911 famílias, um total aproximado de mais de 4 mil pessoas. “Em último caso, se tudo falhar, é só chegar aqui na prefeitura que nós providenciamos uma cesta básica na hora.”
Para ver se é mesmo verdade o que o prefeito nos falou, percorremos mais de 200 km em estradas de terra bem conservadas. Fomos entrando nas casas de moradores de vários bairros rurais e perguntando como as pessoas estavam vivendo. Desconfiados, com medo de perder o benefício (estava sendo feito um recadastramento na cidade), alguns pareciam até ter vergonha de contar como suas vidas melhoraram.
A primeira parada foi em um antigo quilombo, hoje chamado de bairro da Anta Magra (antes tinha outro chamado Anta Gorda), onde logo encontramos Diva Gonçalves Bueno, 60, a tia Diva, mulata forte, com seus cabelos brancos sempre bem arrumados. “De acordo com a situação, o cabelo branqueia mais rápido”, explica a líder da comunidade, que organiza as festas e chama o médico quando alguém precisa. Como quase todo mundo nessa região do Ribeira, perto da divisa com o Paraná, historicamente carente de tudo, Diva começou a trabalhar muito cedo, com 8 anos, para ajudar os pais na lavoura. Os pais e dois dos nove irmãos já morreram. Diva só completou, não faz muito tempo, a quarta série do Ensino Fundamental, e nem sabe o nome da escola (Elói Conceição do Rosário), onde agora ela ajuda na faxina. Lá, nós arrumamos um lugar para conversar.
Com sete filhos e sete netos, Diva recebe o benefício desde o começo do programa. Chegou a ganhar R$ 105 por mês. Como não tem mais filhos na escola, agora o valor caiu para R$ 70, o que, segundo ela, “ajuda a pagar a conta de luz”. Embora cuide dos netos, quem recebe o Bolsa Família são as mães, mas Diva, que se aposentou há seis meses, não enfrenta dificuldades. Está até reformando a casa da irmã Rosália, para onde vai se mudar em breve, ao lado do paiolzinho de madeira em que vivia. Ali ela ainda faz comida para a família no fogão a lenha.  
“O que mudou é que o povo agora está comendo melhor. Vem até gente aqui vender frutas e verduras, roupa, cobertor, lençol… Se vem, é porque o povo pode comprar, né?…”, conta Diva com um sorriso. “O que falta na minha vida, sou franca em lhe dizer, é saúde para um neto que faz hemodiálise e um marido que saiba me dar valor. Meu sonho? Tinha vontade de ser enfermeira e ter um carro para poder socorrer as pessoas… Eu já fiz mais de 20 partos aqui no bairro, aprendi com a minha mãe.”
A família da sua vizinha Aparecida Gonçalves Pereira, 40, cinco filhos, já realizou o sonho do carro próprio, mas agora tem outro mais difícil: fazer o velho Monza andar. Desde que chegou, há seis meses, a lata velha ainda não saiu da frente da casa. Com quatro filhos na escola, Aparecida, que foi uma das primeiras no bairro a se inscrever no Bolsa Família, recebe R$ 302 por mês e já conseguiu até reformar a casa, “que era muito pequenininha”.
Agora, tem quatro quartos, sala, cozinha e banheiro, uma casa bem decente se comparada às de muitos bairros da periferia de São Paulo. Não falta nada: além de comida, agora tem geladeira, televisão, fogão a gás. Com o dinheiro que o marido ganha trabalhando de pedreiro, a família se acostumou a comprar frutas e verduras para as crianças “no dia de sábado”, quando o caminhãozinho da quitanda passa no bairro, e a molecada faz a festa correndo atrás dele. 
Carro Parado: O sonho de Aparecida Pereira é fazer o carro andar
Da área urbana até o bairro Lagoinha, o mais distante do centro, para onde seguimos agora, são 30 km de “estrada de chão”, mas se chega lá sem maiores sustos. Na cidade e no caminho todo, ladeado de plantações de pinus e eucalipto, não há sinais de miséria. Barra do Chapéu é uma cidade limpa, bem cuidada, sem mendigos nem crianças abandonadas nas ruas e, mesmo nos bairros mais pobres, nada lembra as nossas favelas urbanas. 
“Teve época em que a gente aqui vivia só do Bolsa Família”, vai logo contando Rosiléia Andrade Ribeiro, 37, seis filhos com idades entre 19 anos e a caçula, Lorena, de 3 meses. Da varandinha da sua casa, que fica no lugar mais alto do bairro, ao lado da caixa d’água e de uma araucária centenária, ela viu a vida mudar aos poucos na Lagoinha, bairro formado em “terras da igreja” doadas a 15 famílias. 
Rosiléia prepara o almoço na escola rural onde estão matriculados 27 alunos. No dia em que fomos lá, tinha macarronada, carne e salada. As aulas vão do meio-dia às cinco da tarde. Se as crianças não comerem mais nada, fome já não vão passar, mas esse perigo não existe mais por aqui. O marido dela, Sergio, arrumou um emprego no serviço de limpeza da prefeitura e ganha o salário mínimo. Com os R$ 272 que recebem do Bolsa Família, os Ribeiro levam uma vida tranquila.
Casa Nova: com o Bolsa Família de R$222, a família de Vera Lucia e Aparício agora vive com mais conforto 
Na casa, além do básico, tem até aparelho de som, mas não funciona. Rosiléia faz questão de mostrar o guarda-roupa e o guarda-louça novos que comprou. Quando veio morar aqui, faz 20 anos, não havia água nem luz, “ainda tinha gente passando fome e não tinha emprego”. Há três meses, chegou a água encanada. Como outros quatro na cidade, o bairro tem até uma unidade básica de saúde, onde passa um médico a cada 15 dias e uma enfermeira toda semana. O padre Renato vem rezar missa na igrejinha duas vezes por mês. Os evangélicos também têm um templo da Congregação Cristã. Lagoinha tem dois orelhões que funcionam e uma sala de dentista toda equipada, mas fechada. Só falta o dentista, que deve chegar em novembro.
O maior acontecimento do ano por aqui é a Festa de São José, que eles comemoram em maio, com prendas, música e muita dança. Para pular carnaval, tem de ir até Barra do Chapéu ou a Adrianópolis, primeira cidade após a divisa com o Paraná, ambas distantes uma hora de carro, que ninguém ainda tem na Lagoinha. Fora isso, diversão é “um ir na casa do outro”.
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Estamos agora no bairro de Vargem Grande, a 40 km da divisa com o Paraná. Vera Lucia Pontes Maciel, 33 anos, mas que aparenta bem mais por conta de uma depressão crônica, mãe de quatro filhos, todos na escola, começou ganhando R$ 80 por mês logo na implantação do Bolsa Família. Hoje, seu benefício está em R$ 222 e ela ainda conta com a ajuda do marido, Aparício Siqueira, que trabalha de diarista na lavoura dos outros e ganha R$ 30 por jornada.
A renda da família permitiu que desmanchassem a pequena casa em que viviam, só com um quarto, para erguer outra, metade de alvenaria e metade de madeira, com dois quartos, sala, cozinha e banheiro. No telhado tem até uma antena da SKY, que Aparício conta ter arrumado num “rolo”. Essa é a forma como eles chamam as barganhas entre vizinhos, o que lhe permitiu até trocar a moto por uma Parati 88, caindo aos pedaços, pagando mais R$ 1.000 à vista a um amigo. Apesar do aparente progresso da família, eles mantêm no puxadinho ao lado da casa um fogão a lenha para economizar o gás de cozinha.
Aparício, 40 anos, ainda não se deu ao trabalho de tirar a carteira de motorista porque não se arrisca a ir para a cidade. Só circula de carro, quando ele pega, pelos bairros próximos. “Mais na frente, quando eu conseguir comprar um carro melhor, acho que vou tirar minha carta de motorista”, planeja. No momento, ele tem outros planos: já começou a investir em uma criação de abelhas para produzir mel, uma atividade que vem se disseminando nas redondezas. Deixou cinco caixas de madeira no mato com iscas para atrair as abelhas para produzir mel de eucalipto. Se der certo, ele pretende fazer o que mais gosta: chamar os vizinhos para assar um churrasquinho, que ainda é um artigo de luxo por estas bandas. Aqui moram 12 famílias e só uma não recebe do Bolsa Família.
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Figura Popular: Dri, o coordenador de saúde, a figura mais popular da cidade 
A figura mais popular nesse bairro, e em todos os outros cantos da cidade, é o técnico em enfermagem Adriano Werneck Ribas, 33, vereador e coordenador de Saúde do município desde 2008, mais conhecido por Dri, um homossexual assumido e feliz, que conhece todas as casas e todos os problemas de seus moradores, físicos ou sentimentais. Dri comanda uma equipe com dois médicos de família, duas enfermeiras e quatro técnicos em enfermagem, uma fonoaudióloga, uma psicóloga e uma fisioterapeuta, além de um ginecologista que trabalha três dias por semana na cidade, que dão suporte às Unidades Básicas de Saúde. Em breve, sua equipe contará também com cardiologista e psiquiatra.
“A principal mudança que verifiquei aqui com o Bolsa Família é cultural. Hoje, temos menor evasão escolar porque as crianças, além de aprender, sabem que assim estão ajudando as famílias. E elas estão comendo melhor, se vestindo melhor, ganharam autoestima”, constata o coordenador de saúde, que é uma espécie de braço direito do prefeito, pau para toda obra e quebrador de todos os galhos. É o pessoal dele que controla se as mães estão levando os filhos para serem vacinados, o peso dos bebês e até a frequência escolar. Em caso de negligência das mães, o benefício do Bolsa Família pode ser suspenso e até cancelado. Até hoje só houve um caso de alguém que tenha desistido espontaneamente do Bolsa Família.
Dri entra no serviço todos os dias às 7 da manhã e não tem hora para sair. Quase todos os dias, vai visitar as famílias nos bairros. Sabe quem sofre de hipertensão ou diabetes e precisa de acompanhamento constante. Os problemas mais comuns na cidade ainda são verminose, por falta de saneamento básico na maioria das casas, hipertensão e diabetes. Fora isso, “marido que bebe muito e fica violento com a mulher é o que mais tem”. Para esse problema, a prefeitura não tem como dar remédios.
Além de cuidar da saúde, Dri também se encarrega de organizar as festas religiosas nas comunidades. Nas romarias para Bom Jesus de Iguape, feitas todos os anos em agosto, ele acumula as funções de enfermeiro e cozinheiro.  
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“Porta de saída, como assim?”, surpreende-se em um primeiro momento o prefeito, quando lhe pergunto que planos ele tem para que a maioria da população de Barra do Chapéu possa um dia não depender mais do Bolsa de Família. Pode ter pensado que eu já estava querendo ir embora… Ao voltar de uma inspeção pelas estradas vicinais do município, que sempre exigem cuidados, o engenheiro agrônomo Eduardo Filliettaz chega cansado no fim do expediente de volta à prefeitura, mas logo se anima quando lhe pergunto o que mudou em sua cidade nesses últimos dez anos e o que pretende fazer para garantir emprego e renda para os seus moradores não precisarem mais da ajuda do governo.
Paulista de Tietê, 45 anos, Eduardo está há 22 em Barra do Chapéu. Nesse período, principalmente nos últimos anos, ele diz que só viu a vida melhorar. “Melhorou a distribuição de renda para as pessoas mais carentes, dando acesso a alguns produtos de consumos básicos, que movimentaram o comércio e fizeram o dinheiro circular. Sem hipocrisia, sou a favor do Bolsa Família”, diz ele.
A cidade hoje vive do reflorestamento de eucalipto e pinus, da produção de resina e agropecuária, com destaque para produtos hortifrutigranjeiros. O terceiro principal empregador é a prefeitura, com 350 funcionários. O comércio ainda é fraco, mas ganha vida quando chegam os pagamentos do Bolsa Família. Com a recente inauguração de um posto da Caixa Econômica Federal na agência lotérica, o dinheiro agora fica na cidade (antes, os pagamentos eram feitos na cidade vizinha de Apiaí e lá os bolsistas aproveitavam para fazer suas compras). Engana-se, porém, quem achar que municípios como Barra do Chapéu sobrevivem unicamente do Bolsa Família. Este ano, para um total de R$ 1,1 milhão destinado pelo Governo Federal para o Programa em Barra do Chapéu, que tem esse nome por ficar na junção de dois rios do antigo Sítio Chapéu, a prefeitura conta com um orçamento de R$ 13 milhões, ou seja, o Bolsa Família representa menos de 10%.
Eduardo tem muitos planos para aumentar o número de empregos industriais na cidade que, por enquanto, conta com apenas uma serraria. Uma mineradora, que deve gerar perto de cem empregos, já está sendo instalada. O prefeito quer atrair mais indústrias e já reservou uma área para a instalação de empresas, que terão incentivos fiscais da prefeitura.
A outra ponta do seu projeto é investir em educação para preparar a mão de obra que essas indústrias vão demandar. Já fez convênios para ensino a distância com universidades de Santos e Araras, e com a Escola Técnica do Centro Paula Souza. Agora, ele está montando uma parceria com a Universidade de São Carlos. “Meu maior trabalho aqui é correr atrás das coisas”, explica o prefeito em segundo mandato, com a disposição de quem está começando o primeiro.
Nas voltas que a vida dá, o trabalho que trouxe o prefeito para Barra do Chapéu poderá ser o grande chamariz para trazer novas indústrias. É o gasoduto Brasil-Bolívia, que atravessa a cidade e deixou ali um importante legado: um “bico de gás”, que facilitará a oferta de combustível para as futuras instalações industriais.
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Recomendo a quem vive se queixando de “ficar alimentando esses vagabundos do bolsa, esmola que o governo paga com o dinheiro dos meus impostos”, que muitos, aliás, sonegam, e aos caros colegas jornalistas habituados a fazer reportagens por telefone, uma visita a Barra do Chapéu para ver de perto como o Brasil está mudando – e para melhor. Só aviso para não chegar muito tarde porque o restaurante da única pensão da cidade, a Hospedaria Garcez, fecha às oito da noite, quando a cidade já está se preparando para dormir. Pedindo com jeito, dá para sair um arroz com feijão e dois ovos fritos. A viagem é longa e cansativa, mas vale a pena. Ali se tem um retrato dos dez anos que mudaram o Brasil.

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