País retorna ao nível de concentração de renda dos anos 60, um dos mais baixos da História
RIO - Demorou 50 anos para o Brasil se recuperar do estrago que a
política de arrocho salarial do regime militar e a inflação fizeram na
distribuição de renda brasileira. O Índice de Gini, que mostra o nível
da concentração de renda no país e que, quanto mais perto de zero, mais
igualitária é a sociedade, voltou atualmente aos 0,500 nos rendimentos
de todos os trabalhadores, o mesmo índice de 1960 captado pelo Censo
Demográfico. Em 1970, a taxa já tinha subido para 0,56; em 1980 para
0,59; e em 1991 para 0,63. A queda só começou a acontecer
sistematicamente no Século XXI.
A chaga da desigualdade manchava o
Milagre Econômico. O crescimento do país de dois dígitos foi posto em
questão no início dos anos 1970 por Robert McNamara, então presidente do
Banco Mundial. Ele citava o artigo do economista Albert Fishlow, de
1972, professor emérito da Universidade de Columbia, que constatava esse
salto na direção da concentração de renda. Era o período que a
repressão do regime militar alcançava seu auge. Além da repressão, na
política econômica a fórmula de reajuste de salários embutia uma perda.
Corrigia-se o salário real médio dos últimos 24 meses, somava-se taxa de
produtividade e uma parte da expectativa de inflação. Só que as
previsões sempre eram bem menores que a subida real dos preços. A
fórmula ajudou a segurar a inflação.
— Depois do artigo, outros
economistas tentaram seguir essa informação sobre salário. Surgiu o
interesse sobre o problema. Saíram livros, artigos, estudos. Delfim
Netto (ministro da Fazenda na época) pegou a ideia de que era necessário
crescer para poder distribuir. No Brasil, apesar da censura à imprensa,
houve esse debate. Hoje há um reconhecimento generalizado sobre a
melhora na distribuição de renda — conta Fishlow.
Educação, outro fator determinante
Na mesma época, o doutor em Economia Agrária Rodolfo Hoffmann fazia a mesma constatação:
—
Meu trabalho foi publicado na Revista de Administração de Empresas.
Fishlow publicou na “American Economic Review”. Todos nós deduzimos,
matematicamente, que (o aumento da concentração) tinha a ver com a
ditadura. Fiquei preso em Piracicaba. Era o único estudante preso, os
outros eram lideranças sindicais. Isso não afetou a distribuição de
renda? Diminuiu o poder de barganha do trabalhador. O arrocho salarial
certamente contribuiu.
O ex-presidente do Banco Central Carlos
Langoni, na época recém-chegado do doutorado na Universidade de Chicago,
diz que o arrocho salarial afetou a desigualdade, mas aponta outro
fator determinante: a falta de educação. Em 1960, quase 40% da população
de 15 a 69 anos eram analfabetos. A pedido de Delfim Netto, então
ministro da Fazenda, o economista fez o estudo depois que as conclusões
de Fishlow e Hoffmann vieram à tona.
— Como a economia acelerou
seu crescimento, a demanda por mão de obra começou a disparar. Só que a
oferta de mão de obra qualificada era pouco elástica, e a disparidade
dos salários começou a aumentar. Havia enorme disparidade entre
diferentes níveis de educação. Meu estudo deixou claro que a educação
era fator preponderante para explicar a piora na distribuição de renda —
diz Langoni.
A jornalista María Clara R. M. do Prado, que
escreveu artigo recente destacando a recuperação do Gini aos níveis dos
anos 1960, atribuiu o aumento da concentração ao arrocho salarial e à
inflação. O salário dos 10% mais ricos, que era 34 vezes maior que o dos
10% mais pobres, pulou para 40 vezes mais dez anos depois.
— Sem
dúvida, foi o arrocho salarial. A política econômica na ditadura, pelo
menos até meados dos anos 70, foi implementada com o claro objetivo de
estimular o crescimento. Mão de obra barata era parte importante da
equação porque garantia custo baixo para investidores. O mínimo sofreu
expressiva redução real, numa política que deliberadamente visava a
beneficiar a atividade empresarial.
Mínimo menor que em 50
O
salário mínimo ainda não se recuperou. O valor de R$ 724 ainda é menor
que o do início de 1964, que ultrapassava mil reais, e do pico dos anos
1950, de acordo com levantamento feito pela professora da UFRJ Lena
Lavinas:
— Em fevereiro de 1964, João Goulart dá um forte aumento
para o mínimo. Mas ainda estamos recuperando valores dos anos 1950.
Estamos hoje perto dos de 1962. Não estamos avançando, estamos ainda
recuperação.
Segundo Hoffmann, a abertura democrática mostra esses
efeitos paulatinos sobre a distribuição, que ficam mais fortes depois
de 2000:
— Não foram só as eleições gerais. Começa-se a mexer na
distribuição de renda, a proteger os salários mais baixos, cria-se
bolsa-escola, depois o Bolsa Família, o salário mínimo começa a subir em
1995. A mudança política reverteu o quadro.
O economista Edmar
Bacha diz que não se pode atribuir a desigualdade de renda no país ao
regime militar, mas reconhece que apenas recentemente retomamos o índice
de Gini que tínhamos em 1960. Ele afirma que 70% do crescimento da
renda entre 1960 e 1970 foram apropriados pelos 10% mais ricos da
população:
— O período militar apenas agravou (a desigualdade). O Gini hoje no Brasil ainda é alto, está entre os dez mais altos do mundo.
Especialista
em mercado de trabalho, Lauro Ramos, do Instituto de Pesquisa Econômica
Aplicada (Ipea), lembra que os preços relativos da força de trabalho na
época perderam para todos os outros fatores da economia:
—
Salário era o único ativo da camada mais baixa na estrutura de renda.O
salário mínimo foi o instrumento. A indexação funcionava com múltiplos
do mínimo. Segurava o salário mínimo, segurava todo mundo.
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