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sábado, 10 de maio de 2014

Meus sete meses no obscuro mundo das contas de hospital

Como pagar uma dívida de R$ 5 milhões? O drama e a solidão das famílias falidas pela medicina privada

CRISTIANE SEGATTO


Desafios profissionais intensos invadem a vida pessoal e deixam rastros pela casa: três sacolas de material de pesquisa e bloquinhos de anotações no escritório, livros e revistas na sala, embalagens de remédios e produtos de uso hospitalar sobre o armário da cozinha – o único lugar que restou. Nos últimos sete meses, segui os passos de famílias arrasadas por um duplo infortúnio: uma doença grave e a morte financeira provocada pelas contas de hospital. Todas tinham plano de saúde, mas não puderam contar com eles na hora em que precisaram de um tratamento de alto custo. Caíram, sem paraquedas, no obscuro mundo dos custos exorbitantes da medicina privada.

Caí junto com elas. Cubro saúde há 19 anos. O tempo e a experiência não foram suficientes para me ensinar tudo o que aprendi durante a produção dessa reportagem. Várias informações sobre os bastidores desse mercado doente me surpreenderam. Espero que vocês também se surpreendam.


Foram dezenas de entrevistas com famílias, médicos e especialistas em gestão hospitalar e economia da saúde. O esforço e o investimento de ÉPOCA são uma tentativa de lançar luzes sobre as distorções que prejudicam as famílias e elevam os custos de saúde no país. O resultado completo dessa investigação está reunido em 20 páginas da edição impressa desta semana

Os convênios vendem uma segurança que nem sempre entregam. Diante das falhas do sistema público de saúde, ter um plano privado tornou-se uma das maiores aspirações da população. Nos últimos cinco anos, 10 milhões de cidadãos conquistaram a sonhada carteirinha. São hoje 49 milhões de almas (25% da população) a acalentar a ilusão de escapar das filas e da limitação de recursos do SUS, graças ao plano de saúde privado.

Em muitos casos, como os das famílias entrevistadas, essa ilusão não resiste ao teste da primeira doença grave. Quando o convênio se recusa a cobrir algum procedimento e o doente passa a ser considerado pelo hospital como um paciente particular, a família fica à mercê de um sistema de preços confuso, criado num ambiente de transparência zero. 


Durante ou depois da internação, o paciente ou seu responsável legal se veem atolados em cobranças. São contas impagáveis. De onde uma família de classe média pode tirar dinheiro para pagar contas hospitalares de R$ 400 mil, R$ 1 milhão, R$ 5 milhões? Processadas pelos hospitais por inadimplência, elas perdem os bens ou sofrem as consequências de ser devedor no Brasil.

Quando se discute o aumento dos custos de saúde num país, dois responsáveis costumam ser apontados: a tecnologia (recursos sofisticados custam caro) e o envelhecimento (viver mais requer mais cuidados e custa mais).

Tudo isso é verdade, mas há uma terceira causa de aumento de custos sobre o qual pouco se fala: a indefinição do valor dos serviços de saúde. A ele me dediquei nessa reportagem. Qual é o valor adequado de um par de luvas ou de uma seringa descartável? Por que um frasco de soro fisiológico custa num hospital o dobro do preço cobrado na farmácia da esquina?

Há várias razões – quase todas passíveis de indignação. De acordo com as regras atuais do mercado privado de saúde, a função dos hospitais é distorcida. Eles visam à doença – não à saúde. Quanto maior o uso de insumos banais como esparadrapo e seringa, mais o hospital ganha. Ele não é remunerado pelos planos de saúde pela qualidade técnica, pela segurança e por aquele que deveria ser o grande valor de uma instituição de saúde: diagnosticar, tratar e curar. Elas são remuneradas pelos produtos que usam. Os materiais são hoje a principal fonte de receita dos hospitais privados. Respondem por 47,9% do total das receitas. Planos de saúde e hospitais vivem às turras por causa desse sistema de remuneração.

Enquanto essa é uma briga entre iguais (hospitais de um lado, planos de saúde de outro), os consumidores têm pouca consciência sobre os danos que ela acarreta à sociedade. Quando o jogo de forças se torna desigual (hospital de um lado, paciente de outro), as famílias ficam exauridas financeira e emocionalmente. Recebem contas astronômicas e não encontram parâmetros para saber se estão pagando valores justos. Nem por materiais, nem por procedimentos.

Isso precisar acabar. Nos Estados Unidos, o governo criou dois sites para ajudar os cidadãos a comparar a qualidade e os preços cobrados pelas instituições de saúde. Nas páginas www.medicare.com e www.cms.gov, é possível acessar indicadores de qualidade de 3,3 mil hospitais e comparar preços de 130 procedimentos. No Brasil, não há nada parecido. O discurso da transparência é mais eloquente que a prática.

Esse trabalho me deu a clara noção de que qualquer cliente de plano de saúde pode, um dia, se ver na situação dramática dessas famílias. Para reduzir o risco, o advogado Julius Conforti, especializado em direito da saúde, preparou uma relação de cuidados que o consumidor deve ter ao escolher um plano de saúde:

· Busque informações sobre a qualidade dos serviços


Antes de contratar um convênio, pesquise a situação dele no site www.ans.gov.br, da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS). Cada operadora oferece diferentes planos. Verifique se a empresa ou o plano desejado estão na lista dos produtos com maiores índices de reclamações.

· Analise as vantagens e desvantagens existentes entre plano individual/familiar e plano coletivo por adesão


Os planos coletivos por adesão, que são aqueles contratados por intermédio de pessoas jurídicas de caráter profissional, classista ou setorial, como conselhos, sindicatos e associações profissionais, tendem a ter valores de mensalidades menores no início da contratação. Porém, como a ANS não determina o teto máximo dos reajustes anuais desse tipo de contrato, ao longo dos anos, eles passam a ter valores superiores aos dos contratos individuais/familiares. Além disso, os contratos coletivos podem ser rescindidos unilateralmente. O ideal é contratar um plano individual/familiar porque os reajustes anuais dessa modalidade são regulados pela ANS e somente podem ser cancelados se o cliente se tornar inadimplente. O problema, atualmente, é que poucas empresas de assistência médica privada vendem esse tipo de plano.

· Escolha um tipo de plano adequado às suas necessidades


Os planos de saúde podem ter apenas cobertura ambulatorial, apenas cobertura hospitalar ou abranger esses dois tipos. O ideal é que o plano tenha duas coberturas. O consumidor deve escolher, também, o tipo de acomodação, que pode ser em quarto particular ou enfermaria. A escolha pelo quarto individual, em geral, garante o acesso a um número maior de hospitais credenciados. As mulheres que tenham a intenção de engravidar devem contratar um plano que possua também cobertura para obstetrícia.

· Área de abrangência do plano


Pensar na área de abrangência do plano de saúde é outro fator importante. Há planos de coberturas municipal, estadual e nacional, entre outras possibilidades. Informe-se com antecedência sobre a rede credenciada de hospitais, clínicas, laboratórios e profissionais de saúde que atenderão. O plano que garante atendimento nacional, embora custe mais, permite o acesso a um número maior de prestadores de serviços.

· Rede Credenciada


Independentemente da abrangência geográfica do plano escolhido, é importante, antes da contratação, verificar se o produto ao qual se pretende aderir possui os hospitais, laboratórios e profissionais que são do interesse do consumidor. Guardar eventuais panfletos publicitários que mencionem os prestadores de serviços que estarão disponíveis também é bastante útil, caso existam descredenciamentos irregulares na vigência da relação contratual.

· Preenchimento da Declaração de Saúde


No momento da contratação, a operadora solicitará o preenchimento de uma declaração de saúde, formulário no qual o consumidor deve informar as doenças ou lesões de que saiba ser portador naquele momento. Caso uma doença preexistente não seja declarada, o plano de saúde poderá solicitar à ANS um julgamento para verificar se houve fraude (não declaração de doença/lesão conhecida na hora da contratação). Nesses casos, o contrato pode ser cancelado.

· Fique atento aos prazos de carência


Os períodos máximos de carência são: 24 horas para urgência e emergência; 180 dias para internações, cirurgias e procedimentos de alta complexidade e 300 dias para parto. A operadora pode exigir prazos menores, mas isso deve ser garantido por escrito.

· Promessas feitas pelas empresas e corretores


É preciso, ainda, ficar atento a promessas feitas pelas operadoras de saúde e pelos corretores que agem como intermediários na venda do plano. Para não ser enganado, é importante solicitar que todos os benefícios prometidos constem do contrato e sejam previstos, por meio de aditivos contratuais.

Por causa dessa reportagem, fiquei ausente desta coluna durante algumas semanas. Peço desculpas. Espero que tenha sido por uma boa causa. Se você respira, suspeito que esse assunto lhe interessa.

(Cristiane Segatto escreve às sextas-feiras)

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