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'Na prática, o asfaltamento de ruas e as obras viárias têm precedência sobre ações de saneamento' afirma Ligia no jornal O Globo
Os impactos ambientais e do saneamento sobre a saúde dos brasileiros é o tema do artigo da professora Ligia Bahia, membro do Conselho Diretivo da Abrasco, publicado nesta segunda-feira no jornal O Globo. Ligia comenta ainda a indicação do abrasquiano Leo Heller que assumiu recentemente a relatoria de recursos hídricos e saneamento da ONU. Confira o artigo na íntegra.
Lavar as mãos é uma dessas expressões cujo duplo sentido esclarece tanto as interações entre saúde e meio ambiente quanto a responsabilidade pela eliminação e controle dos riscos. Existem registros sobre recomendações para purificação da água nos anos 2000 a.C. na Índia. Mas, no início da modernidade, as relações entre agentes nocivos à saúde e as práticas sanitárias geraram famosas polêmicas. No século XIX, houve o reconhecimento de doenças específicas transmitidas pelo meio ambiente e a rejeição às evidências apresentadas em 1847, pelo médico húngaro Semmelweis, sobre a redução das mortes de gestantes com o uso da lavagem de mãos em clínicas obstétricas. Atualmente, as constatações sobre impactos ambientais e do saneamento sobre a saúde são inquestionáveis. Mas grande parte das nossas cidades possui imensas áreas ambientalmente frágeis. Segundo o Plano de Saneamento Básico de 2013, 33,9% da população têm atendimento precário e 6,8% não contam com abastecimento de água potável; e as condições adequadas de esgotamento sanitário e coleta de lixo abrangem apenas 39,7% e 60% dos habitantes. Favelas e loteamentos ilegais, onde residem pessoas que não conseguem entrar no mercado residencial legalizado e crescentemente especulativo, têm valas negras, esgotos a céu aberto. As políticas públicas ainda não foram capazes de regular o uso e a ocupação do solo, universalizar e assegurar serviços voltados à qualidade do meio ambiente.
Além das condições sanitárias, poluição, biocidas, estresse urbano e radiação prejudicam a saúde. A mortalidade por patologias do sistema respiratório está associada às variações das concentrações de poluentes atmosféricos. O uso dos agrotóxicos relaciona-se com distúrbios reprodutivos, efeitos neurotóxicos e câncer. Países europeus e americanos solucionaram carências de serviços de saneamento e possuem populações mais saudáveis, o que, por si, constitui um indicador de desenvolvimento. A expectativa de vida no Brasil é inferior àquela estimada somente pelo desempenho econômico. O acesso a ações de abastecimento de água, esgotamento sanitário e cuidados à saúde elevam os padrões de desenvolvimento.
A batalha sobre saneamento e saúde, no país, ocorre em um campo no qual ninguém discorda de premissas teóricas, mas mostra-se quase inexpugnável a interrogações sobre convicções e políticas embasadas pela racionalidade economicista e clientelista. Em termos declaratórios, o saneamento aparece como prioridade máxima de qualquer agenda social, mas a execução das ações é lenta e tortuosa. A inscrição da justiça urbana na Constituição, o Estatuto da Cidade, a criação do Ministério, conselhos e conferências das cidades e a Lei do Saneamento Básico de 2007 foram inovadores, mas insuficientes para vincular investimentos à função social da moradia.
Empreiteiras e os interesses imobiliários impõem uma agenda política restrita de obras que podem ser concluídas em quatro anos e financiam as campanhas. Na prática, o asfaltamento de ruas e obras viárias têm precedência sobre o saneamento. O Programa de Aceleração do Crescimento (PAC 1 e 2) teve o mérito de tirar o saneamento do limbo. Contudo, a execução das atividades previstas esbarra na dispersão das competências e pulverização de recursos e responsabilidades em sete ministérios e no não equacionamento das relações entre os entes federados.
O mosaico institucional e político é complicadíssimo. A parte mais simples, a divisão entre cidades com maior e menor porte e áreas indígenas entre os ministérios das Cidades e da Saúde parece razoável, até que se perceba que é a saúde que responde pelo controle de toda a água para consumo humano. No rateio dos cargos na gestão do governo federal que se encerra, o Ministério das Cidades foi entregue ao Partido Popular (PP), acentuando o padrão de estímulo a obras, sem planejamento, não direcionadas a alterar as estruturas de desigualdade no acesso ao saneamento. Novas casas e unidades de saúde e asfalto para não ter que andar na lama melhoram a qualidade de vida, mas o saneamento é essencial para valorizar áreas segregadas, integrando-as à cidade. Existe conhecimento disponível para evitar tragédias depois das chuvas, paralisações e suspensão de abastecimento de água e epidemias de doenças transmitidas por vetores biológicos e mecânicos tais como a dengue, a leptospirose e chicungunha. Não é por acaso que o brasileiro Leo Heller, sanitarista da Universidade Federal de Minas Gerais, foi escolhido, entre especialistas de diversos países, como relator especial da Organização das Nações Unidas sobre direito ao saneamento.
Pode-se até polemizar sobre os benefícios e malefícios individuais e coletivos de transporte, atendimento médico e educação. Mas é inimaginável supor que o problema do afastamento dos resíduos líquidos e do lixo possa ser solucionado com a volta dos penicos e recipientes individuais despejados nos mananciais de água ou em locais inapropriados ou esforços municipais isolados. O governo federal tem um papel insubstituível para a formulação e execução de políticas urbanas, ambientais, saneamento e saúde. A prioridade das prioridades para o uso dos recursos públicos e fundos constituídos pela poupança dos trabalhadores é o saneamento. O aumento da frequência de declarações sobre a disposição de usar serviços públicos tais como transportes, saúde e educação, se a qualidade fosse melhor, sugere ouvir com seriedade os pesquisadores, lideranças comunitárias e sindicais e os conselhos e conferências de saúde, das cidades e meio ambiente.
Os impactos ambientais e do saneamento sobre a saúde dos brasileiros é o tema do artigo da professora Ligia Bahia, membro do Conselho Diretivo da Abrasco, publicado nesta segunda-feira no jornal O Globo. Ligia comenta ainda a indicação do abrasquiano Leo Heller que assumiu recentemente a relatoria de recursos hídricos e saneamento da ONU. Confira o artigo na íntegra.
Lavar as mãos é uma dessas expressões cujo duplo sentido esclarece tanto as interações entre saúde e meio ambiente quanto a responsabilidade pela eliminação e controle dos riscos. Existem registros sobre recomendações para purificação da água nos anos 2000 a.C. na Índia. Mas, no início da modernidade, as relações entre agentes nocivos à saúde e as práticas sanitárias geraram famosas polêmicas. No século XIX, houve o reconhecimento de doenças específicas transmitidas pelo meio ambiente e a rejeição às evidências apresentadas em 1847, pelo médico húngaro Semmelweis, sobre a redução das mortes de gestantes com o uso da lavagem de mãos em clínicas obstétricas. Atualmente, as constatações sobre impactos ambientais e do saneamento sobre a saúde são inquestionáveis. Mas grande parte das nossas cidades possui imensas áreas ambientalmente frágeis. Segundo o Plano de Saneamento Básico de 2013, 33,9% da população têm atendimento precário e 6,8% não contam com abastecimento de água potável; e as condições adequadas de esgotamento sanitário e coleta de lixo abrangem apenas 39,7% e 60% dos habitantes. Favelas e loteamentos ilegais, onde residem pessoas que não conseguem entrar no mercado residencial legalizado e crescentemente especulativo, têm valas negras, esgotos a céu aberto. As políticas públicas ainda não foram capazes de regular o uso e a ocupação do solo, universalizar e assegurar serviços voltados à qualidade do meio ambiente.
Além das condições sanitárias, poluição, biocidas, estresse urbano e radiação prejudicam a saúde. A mortalidade por patologias do sistema respiratório está associada às variações das concentrações de poluentes atmosféricos. O uso dos agrotóxicos relaciona-se com distúrbios reprodutivos, efeitos neurotóxicos e câncer. Países europeus e americanos solucionaram carências de serviços de saneamento e possuem populações mais saudáveis, o que, por si, constitui um indicador de desenvolvimento. A expectativa de vida no Brasil é inferior àquela estimada somente pelo desempenho econômico. O acesso a ações de abastecimento de água, esgotamento sanitário e cuidados à saúde elevam os padrões de desenvolvimento.
A batalha sobre saneamento e saúde, no país, ocorre em um campo no qual ninguém discorda de premissas teóricas, mas mostra-se quase inexpugnável a interrogações sobre convicções e políticas embasadas pela racionalidade economicista e clientelista. Em termos declaratórios, o saneamento aparece como prioridade máxima de qualquer agenda social, mas a execução das ações é lenta e tortuosa. A inscrição da justiça urbana na Constituição, o Estatuto da Cidade, a criação do Ministério, conselhos e conferências das cidades e a Lei do Saneamento Básico de 2007 foram inovadores, mas insuficientes para vincular investimentos à função social da moradia.
Empreiteiras e os interesses imobiliários impõem uma agenda política restrita de obras que podem ser concluídas em quatro anos e financiam as campanhas. Na prática, o asfaltamento de ruas e obras viárias têm precedência sobre o saneamento. O Programa de Aceleração do Crescimento (PAC 1 e 2) teve o mérito de tirar o saneamento do limbo. Contudo, a execução das atividades previstas esbarra na dispersão das competências e pulverização de recursos e responsabilidades em sete ministérios e no não equacionamento das relações entre os entes federados.
O mosaico institucional e político é complicadíssimo. A parte mais simples, a divisão entre cidades com maior e menor porte e áreas indígenas entre os ministérios das Cidades e da Saúde parece razoável, até que se perceba que é a saúde que responde pelo controle de toda a água para consumo humano. No rateio dos cargos na gestão do governo federal que se encerra, o Ministério das Cidades foi entregue ao Partido Popular (PP), acentuando o padrão de estímulo a obras, sem planejamento, não direcionadas a alterar as estruturas de desigualdade no acesso ao saneamento. Novas casas e unidades de saúde e asfalto para não ter que andar na lama melhoram a qualidade de vida, mas o saneamento é essencial para valorizar áreas segregadas, integrando-as à cidade. Existe conhecimento disponível para evitar tragédias depois das chuvas, paralisações e suspensão de abastecimento de água e epidemias de doenças transmitidas por vetores biológicos e mecânicos tais como a dengue, a leptospirose e chicungunha. Não é por acaso que o brasileiro Leo Heller, sanitarista da Universidade Federal de Minas Gerais, foi escolhido, entre especialistas de diversos países, como relator especial da Organização das Nações Unidas sobre direito ao saneamento.
Pode-se até polemizar sobre os benefícios e malefícios individuais e coletivos de transporte, atendimento médico e educação. Mas é inimaginável supor que o problema do afastamento dos resíduos líquidos e do lixo possa ser solucionado com a volta dos penicos e recipientes individuais despejados nos mananciais de água ou em locais inapropriados ou esforços municipais isolados. O governo federal tem um papel insubstituível para a formulação e execução de políticas urbanas, ambientais, saneamento e saúde. A prioridade das prioridades para o uso dos recursos públicos e fundos constituídos pela poupança dos trabalhadores é o saneamento. O aumento da frequência de declarações sobre a disposição de usar serviços públicos tais como transportes, saúde e educação, se a qualidade fosse melhor, sugere ouvir com seriedade os pesquisadores, lideranças comunitárias e sindicais e os conselhos e conferências de saúde, das cidades e meio ambiente.
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