Falar de aborto é falar no direito ao planejamento familiar, à autonomia reprodutiva e à saúde. Estamos falando de muitas mulheres, de mulheres comuns, de mulheres trabalhadoras. Os projetos de vida dessas pessoas consistem em quem elas são, daí a extrema crueldade de submetê-las a um futuro imposto por uma legislação que não leva em consideração sua integridade e sua dignidade
No segundo semestre de 2015, a discussão pública sobre o direito ao aborto no Brasil se ampliou. As mulheres foram às ruas contra o PL 5069/2013, que propõe uma legislação que interfere no direito daquelas que sofreram violência sexual ao atendimento hospitalar para a profilaxia e, caso desejem, para a interrupção da gravidez. Vale lembrar que no Brasil, como na maior parte da América Latina, aborto é crime. Aqui, a gravidez resultante de estupro é uma das três exceções previstas em lei – as outras são risco de vida da mãe e anencefalia fetal.
O aumento no número de casos de microcefalia provocada pelo vírus zika é um elemento novo em uma situação que não é nova para as mulheres brasileiras. Segundo dados do Ministério da Saúde, havia até o final de janeiro mais de 4 mil casos suspeitos notificados, concentrados sobretudo na região Nordeste.
A criminalização do aborto torna a maternidade compulsória. E o efeito dessa situação é diferente segundo sua posição social. De um lado, estão aquelas que têm recursos para assegurar sua autonomia no planejamento familiar e na reprodução por meio da interrupção clandestina, mas segura, da gestação; de outro, temos a realidade ainda mais complicada das que são colocadas diante da alternativa de uma maternidade indesejada ou dos riscos do aborto inseguro.
A possibilidade de contaminação pelo vírus zika traz um componente bastante delicado a essa situação: mulheres que desejaram ou desejam ainda engravidar têm um elemento novo a considerar, isto é, levar a cabo ou não uma gravidez diante do risco de contaminação pelo vírus, diante da contaminação confirmada nos casos em que o diagnóstico foi possível e diante da possibilidade de que o feto seja portador de microcefalia. Muitas delas são mulheres que planejaram ser mães e que desejariam manter a gravidez, mas não nessas condições.
A criminalização da decisão de interromper uma gravidez evoca uma série de questões que dizem respeito à democracia e à justiça, no ponto em que estão entrelaçadas à vida das mulheres. Quando discutimos abertamente o aborto estamos pensando nas mulheres como cidadãs. Estamos pensando em indivíduos aos quais devem ser garantidos os direitos básicos numa democracia, entre os quais o de decidir o que se passa no e com seu corpo. Por isso o problema principal é quem decide, e em que circunstâncias, sobre a manutenção ou a interrupção de uma gravidez.
O problema passa, ainda, por compreender o que está implicado na decisão de interromper uma gravidez em um contexto de criminalização – sabemos, por dados da Organização Mundial de Saúde (OMS) e por dados de pesquisas realizadas no Brasil, que a criminalização não significa menos abortos, mas abortos realizados em situações inseguras, provocando sequelas e mortes entre as mulheres, sobretudo entre as mais pobres. A questão do aborto é, assim, também uma questão de saúde pública.
Mesmo quando se trata dessa dimensão, a da saúde pública, o foco permanece na decisão das mulheres. Por isso, em um caso como o da epidemia atual de microcefalia, validar a decisão das mulheres não se confunde com o exercício da autoridade do Estado sobre sua decisão e, por isso mesmo, não se confunde com a eugenia. Perspectivas eugênicas estiveram na base de propostas de flexibilização nas leis que criminalizavam o aborto na América Latina no início do século XX. Entre as mulheres pobres, negras e indígenas da América, o racismo e o controle populacional fundamentaram políticas de controle que promoveram a esterilização, realizada em grande escala em meados do século XX e adotadas como políticas de Estado até muito recentemente, como no Peru de Alberto Fujimori, já nos anos 1990.
Como afirmei em outro lugar, o direito ao aborto, como direito de cidadania, contrasta com (a) a regulação e intervenção por parte do Estado e dos seus agentes em nome de princípios de autoridade e de valores alheios às próprias mulheres, (b) o controle por parte das famílias, na forma da autoridade dos pais, dos maridos, mas também de outras mulheres, (c) as formas de regulação baseadas em crenças religiosas, ferindo o princípio da laicidade do Estado.1
Mesmo numa perspectiva estritamente liberal, aquém do debate feminista, a democracia requer normas e instituições que validem e garantam direitos iguais de cidadania aos indivíduos, entre os quais se destacam a igual obrigação e a igual liberdade frente às leis, o que é ferido quando o controle sobre o próprio corpo é desigual entre mulheres e homens. A igualdade de direitos inclui, no caso dos adultos[2], o direito a decidir autonomamente sobre o que se passa no e com seu corpo – em outras palavras, o direito a dispor autonomamente do seu corpo. Por fim, a democracia requer o Estado laico, sem o qual a igual liberdade de crença, a liberdade para não crer e a garantia a uma pluralidade de estilos de vida estão ameaçadas.
A antropóloga Débora Diniz, que prepara uma ação que será levada ao Supremo Tribunal Federal (STF) para garantir o direito das mulheres de decidir sobre a manutenção ou não de uma gravidez no contexto de ampliação dos casos de microcefalia, tem mencionado também dois componentes que se tornam mais agudos no contexto atual. Um deles é a tortura psicológica à qual estão submetidas as mulheres grávidas no Brasil, hoje. O impedimento de que decidam sobre interromper a gravidez corresponde a uma situação de extremo sofrimento e insegurança. Sua integridade física e emocional é desrespeitada pela imposição da manutenção da gravidez.
O segundo componente é socioeconômico. Como mencionei antes neste texto, a criminalização do aborto atinge de maneiras distintas as mulheres. A realidade das mulheres mais pobres é o aborto inseguro. Hoje, essa situação é acrescida de outros elementos: o mosquito aedes aegypti, transmissor do vírus zika, está mais presente em áreas nas quais as condições sanitárias são mais precárias, justamente aquelas em que têm sido contabilizados mais registros de microcefalia; o acesso das mulheres mais pobres ao diagnóstico da contaminação pelo vírus e ao acompanhamento adequado da gestação é mais precário; caso a gestação seja levada a cabo, essas são as mulheres com menores condições para a realização dos tratamentos e cuidados intensivos de que uma criança com microcefalia precisará.
Garantido o direito a decidir, é necessário garantir também o acompanhamento adequado da gestação para aquelas mulheres que optem por manter a gravidez. Além disso, se a gravidez for levada a cabo, família e criança precisarão de atendimento específico. Nesse caso, não estamos mais no plano da decisão individual, mas da responsabilidade do Estado e da sociedade pelas crianças. Sobretudo em condições especiais, mas não apenas nelas, a demanda por cuidado não pode ser vista como um problema privado familiar. Quando isso ocorre, penalizamos as famílias que têm menos recursos e, nelas, dada a divisão do trabalho corrente, as mulheres, que são responsabilizadas desigualmente pelo trabalho de cuidar das crianças.
O suporte ao direito de decidir das mulheres não colide com a defesa de que adultos, Estado e sociedade sejam responsáveis pela infância, provendo cuidado adequado para as crianças, sobretudo em condições especiais.
Falar de aborto é falar no direito ao planejamento familiar, à autonomia reprodutiva e à saúde. Estamos falando de muitas mulheres, de mulheres comuns, de mulheres trabalhadoras. Os projetos de vida dessas pessoas consistem em quem elas são, daí a extrema crueldade de submetê-las a um futuro imposto por uma legislação que não leva em consideração sua integridade e sua dignidade.
Estamos também falando de embriões e fetos seriamente afetados por uma epidemia que interfere no seu desenvolvimento. E, quando a gravidez é levada a cabo, aí sim estamos falando de crianças que precisam contar com suporte médico e cuidado. A qualidade da sua vida dependerá não apenas do cuidado e da responsabilidade dos adultos que lhes são próximos, mas também das responsabilidades assumidas conjuntamente pelo Estado e pela sociedade.
NOTAS
1 Retomei aqui a discussão presente em Flávia Biroli: “Autonomia e justiça no debate sobre aborto: implicações teóricas e políticas”, Revista Brasileira de Ciência Política, n. 15, pp. 37-68, 2014.2 As crianças também têm, é claro, direito à integridade física e a dispor de seu corpo, mas esse direito tem sido configurado de acordo com as especificidades e formas de dependência que caracterizam a infância.
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Para aprofundar a reflexão sobre questões de gênero, o impacto do feminismo na teoria política e as diferentes matizes e debates em torno da luta e da teoria da emancipação das mulheres, recomendamos a leitura de Feminismo e política: uma introdução, de Flávia Biroli e Luis Felipe Miguel, que oferece um inédito e didático panorama do feminismo hoje.
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Flávia Biroli é professora do Instituto de Ciência Política da Universidade de Brasília, onde edita a Revista Brasileira de Ciência Política e coordena o Grupo de Pesquisa sobre Democracia e Desigualdades – Demodê, que mantém o Blog do Demodê, onde escreve regularmente. É autora, entre outros, de Autonomia e desigualdades de gênero: contribuições do feminismo para a crítica democrática (Eduff/Horizonte, 2013), Família: novos conceitos (Editora Perseu Abramo, 2014) e, em co-autoria com Luis Felipe Miguel, Feminismo e política: uma introdução (Boitempo, 2014).
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