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sexta-feira, 23 de junho de 2017

Porto Alegre, capital da Aids no país: ‘paradoxo em uma cidade moderna – ou que já foi moderna’



“A doença tem atingido, na cidade, também as pessoas idosas, ao contrário do que eram, frequentemente, as populações mais vulneráveis ao vírus”, disse o vereador Aldacir Oliboni (PT)

Gregório Mascarenhas no Sul21 (dica da Monique Prada)

Porto Alegre é hoje a capital com maior número de óbitos como consequência do vírus HIV no país. A média nacional de detecção é de 19,7 pessoas a cada 100 mil habitantes, mas, na capital do Rio Grande do Sul a taxa é de 94,2 pessoas. O Estado, na mesma tendência, é o segundo, no país, em taxa de identificação de pessoas com Aids, atrás apenas do Amazonas. “O principal problema é vinculado à falta ou à precariedade das políticas públicas de prevenção ou tratamento”, disse o vereador Aldacir Oliboni (PT), proponente de uma audiência pública, ocorrida na manhã desta terça-feira (20), a respeito do enfrentamento de doenças sexualmente transmissíveis.
“A pauta surge devido à série de reclamações no município e no Estado quanto à questão da Aids e das DSTs”, justificou o parlamentar. Apesar da tendência de óbitos em decorrência do HIV estarem em queda, a taxa ainda é cinco vezes superior à média nacional. “A doença tem atingido, na cidade, também as pessoas idosas, ao contrário do que eram, frequentemente, as populações mais vulneráveis ao vírus”, disse Oliboni, para quem não há, por parte do poder público, “nada além de ações pontuais”. A audiência, organizada pela Comissão de Saúde e Meio Ambiente (Cosmam), teve também a presença dos vereadores André Carús (PMDB), Mauro Pinheiro (Rede), José Freitas (PRB) e Paulo Brum (PTB). O governo estadual foi convidado, mas não enviou representação.
Oliboni diz que Porto Alegre assinou compromisso com UNAIDS, um programa das Nações Unidas sobre HIV/Aids, de até 2020 colocar 90% da população infectada em tratamento. O Plano Plurianual, todavia, não contempla a meta do acordo — que, para o governo municipal, é de atender 70% da população até 2021. “Abdicar da meta assinada significa abandonar a luta contra o risco de transmissão”, criticou.
“Acompanho a Aids desde 1984, quando a mortalidade era de 100% em quatro meses de doença. Em 30 anos, descobriu-se quase tudo em relação ao HIV — exceto sua cura”, afirmou o epidemiologista Breno Righel Santos, do Hospital Nossa Senhora da Conceição. “[A epidemia em Porto Alegre] é um paradoxo em uma cidade moderna — ou que já foi moderna” criticou.
Ele afirma que a prevalência de doenças como tuberculose ou sífilis, no município, também estão entre as mais altas do Brasil. E, no caso da sífilis, ainda há uma epidemia mundial que agrava o quadro. “Não existe aferimento generalizado do teste nas populações expostas”, disse o médico, e que, portanto, “nós não sabemos com o que vamos lidar daqui pra frente”. Para atacar o problema da baixa notificação, ele diz que os testes de HIV deveriam ser oferecidos a todas as pessoas que acessam o sistema de saúde.
Para a presidente do Grupo de Apoio à Prevenção da Aids do Rio Grande do Sul (Gapa/RS), Carla Almeida, a questão do HIV/Aids e DSTs não está mais na pauta política dos governos. “O que isso gera? Invisibilidade. Não vemos mais na pauta dos meios de comunicação. Na capital da Aids do Brasil, estamos há mais de uma década sem isso na agenda”, afirmou a ativista, que critica o combate à doença no país, baseado exclusivamente “nos avanços biomédicos”. Ela diz que prevenção e combate ao vírus se dão também “na garantia de direitos humanos e de acesso ao sistema de saúde. Há uma grande barreira para as pessoas. Carregar um estigma ainda é um grande peso para as pessoas”, argumentou.
“Temos de lembrar que a epidemia existe também por falta de acesso à saúde e à moradia. Não adianta ter só o remédio, se todo o resto não existe. O Estado mínimo não permite ao SUS responder à questão da Aids, e, quanto mais sucateado está, mais frágil é a proteção”, interpreta Carla 

No caso de Porto Alegre, Carla diz que é preciso considerar o contexto da região metropolitana, e enumerou três hotspots, isto é, locais onde a detecção é mais comum em Porto Alegre: o Partenon, “que tem também um grande índice de tuberculose há pelo menos uma década”, o Rubem Berta e o extremo-sul da Capital. Ela criticou também os programas de combate à doença nos últimos anos: “A cooperação interfederativa é uma falácia, não serviu nem para mostrar dados. As informações mais sólidas são de antes de 2007. Tudo é muito empírico, generalizado e concentrado em alguns grupos.”
Para Rosa Helena, participante do Conselho Distrital de Saúde do Partenon, desde que houve descentralização no combate, “as coisas pioraram ao invés de melhorar, no caso de quem já foi infectado”. O ponto positivo é a proximidade dos pontos de atendimento; como pontos negativos, “muito maiores”, disse ela, exemplificou que “há pessoas que não vão aos pontos de atendimento por medo do reconhecimento. Agentes de saúde, nos bairros, costumam conhecer as pessoas que atendem, e existe temor de que as informações se proliferem.”  
A presidente do Abrasus, Terezinha Borges, conta que a entidade vem sendo procurada, nos últimos anos, por um grande número de mulheres idosas que recém se descobriram soropositivas. Há, para ela, uma questão cultural, de homens idosos que se contaminam, passam o vírus para as esposas e ainda as culpam. “Pessoas que estão completamente perdidas”, lamentou.
“Muitas vezes se distribui preservativos em eventos voltados às classes médias e alta, enquanto a periferia está desassistida”, diz o representante do Grupo Outra Visão, Isidóro de Souza, para quem há um “distanciamento da Secretaria de Saúde” dos grupos sociais e de movimentos ligados ao tema. Ele, que tem opinião de que qualquer ocasião voltada à juventude deve ter distribuição de preservativos — como, por exemplo, a Parada Livre, cujas reuniões de organização ocorrem desde o início do ano e ainda não tiveram a presença do governo municipal. Ele critica também a decisão “unilateral” de vender testes rápidos em farmácias, sem aconselhamento.
Carlos Soares, representante estadual do grupo Vitamóre, uma associação de portadores do vírus HTLV [um retrovírus da mesma família do HIV, que pode causar problemas neurológicos degenerativos], também houve descaso no combate à doença na cidade. “Tínhamos três casos nos anos 90, e depois disso nunca mais se fez nada”. Hoje, segundo ele, há pelo menos 15 mil notificações em Porto Alegre – mas o número pode ser mais alto, já que os dados são de 2005.  

“É caso para CPI, não para audiência pública”, disse Gustavo Bernardes, representante do gabinete da deputada federal Maria do Rosário (PT). Ele afirma que existe uma precarização da relação com movimentos sociais: “não existe resposta sem participação de movimentos e das comunidades. Não é o servidor público, em carro oficial, que vai à Redenção, à noite, para distribuir preservativos”. Há, de acordo com Gustavo, um fator religioso que impede discussão de sexualidade e gênero, “assinando embaixo” na proliferação da epidemia.
Para Lotário de Souza, enfermeiro sanitarista e assessor do gabinete da vereadora Fernanda Melchiona (Psol), trata-se de uma situação “não só alarmante, mas uma tragédia”.
“É preciso compreender que é uma questão também de assistência social. Devemos compreender que os hotspots de HIV são também os bolsões de miséria da cidade, com acesso precário aos serviços públicos. Teremos um cenário pior com a criste”, projeta Lotário.
O enfermeiro também crê que questões “muito sérias de saúde pública” são levadas por um viés moral. “A prevenção deve ser combinada nas emergências, com distribuição de preservativos, que deixou de ser mote das campanhas. Deve acontecer inclusive nas farmácias, gratuitamente. Pessoas estão chegando muito debilitadas porque procuram o serviço muito tarde, por conta da estigmatização”, lamentou.
“Vamos criar um Projeto de Lei para criar um comitê de acompanhamento”, disse o vereador André Carus, como deliberação final. Parlamentares da Cosmam devem ir ao Conselho Municipal de Saúde, no próximo dia 3 de julho, para a “potencialização das atividades”.


Comentário da Monique Prada · 

Queria lembrar que ano passado, a Câmara de Vereadores de Porto Alegre vetou um projeto sobre oferecer preservativos em casas noturnas.

Queria lembrar que, quanto menos falarmos de sexo, mais infecções por HIV e outras ISTs teremos (isso sem falar da gravidez precoce).

Queria lembrar que quanto mais as mulheres se sentirem seguras em seus relacionamentos, mais expostas a risco estarão.

Queria lembrar que, como trabalhadora sexual, é muito fácil para mim exigir o uso de preservativo, mas que a quantidade de relatos que me chegam sobre homens se negando a usar preservativo em relações de sexo não pago é assustadora.

Os casais simplemente aboliram o uso. Nada mais moderno que se infectarem com HIV e outras ISTs, Porto Alegre ditando tendência.

O Zé Camisinha precisa ser aposentado, essa estratégia não está convencendo.

O trabalho do GAPA precisa ser apoiado.

Precisamos usar preservativo, precisamos todos usar preservativo. Eu, você, sua namorada, sua esposa.

Não há, no momento, em Porto Alegre, modo outro de barrar a epidemia que não seja este.

Camisinhas nos ônibus, camisinhas nas escolas, camisinhas nas festas.

Precisamos assumir: fazer sexo é bom, nós gostamos de fazer sexo, nós fazemos sexo.

Vamos tornar isso seguro.

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