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domingo, 9 de setembro de 2018

“Simples mortais?”: as diferenciações e os fundamentos seculares da medicina e das políticas de saúde (por Ligia Bahia)


Professora Ligia Bahia, membro da Comissão de Política, Planejamento e Gestão da Abrasco, publicou no jornal O Globo deste sábado, 8 de setembro, o artigo “Simples mortais?” onde aborda as diferenciações e os fundamentos seculares da medicina e das políticas de saúde. Confira:

Uma ideia antes trivial — as pessoas são igualmente dignas de respeito — tornou-se questionável. Diferenciações tornaram-se cotidianas. Melhores cartões de crédito e milhagem permitem isenções de pagamentos de taxas e acesso a salas e serviços exclusivos. São “personalizações” materializadas em menos atenção para quem paga relativamente pouco, passam por merecimentos, conveniências. Salas exclusivas, filas menores, poltronas maiores em aeroportos e aviões viraram rotina. Mas as distinções por falta de dinheiro, conexões sociais, cor de pele, raça, problemas mentais ou cromossomo X adicional opõem-se aos fundamentos seculares da medicina e das políticas de saúde.

A história das instituições de saúde, apesar das exceções, caracteriza-se pelas tentativas de reduzir assimetrias entre as chances de ricos e pobres para nascer, crescer, ficar adulto, ser idoso ativo e ter uma boa morte. Não foi coincidência a participação intensa de médicos nos movimentos abolicionistas nacionais e internacionais.

Ninguém admite sem embaraço tratamento desigual para a mesma doença cardíaca de um mendigo e um milionário. O constrangimento cresce exponencialmente com a constatação sobre as diferenças na situação de saúde. Com a democratização, o aumento da renda e o SUS, o coeficiente de mortalidade infantil foi reduzido entre 2010 e 2015 de 16 para 13,3 e subiu para 14 em 2016. No mesmo período, a taxa de homicídios aumentou de 26,2 para 30,3. É plausível supor que a melhoria das condições de vida e a ampliação do SUS tiveram efeito positivo para a vida dos bebês.

Falhas nas políticas de segurança — especialmente controle responsável de armas de fogo — e também preservação de preconceitos e discriminações teriam contribuído para a elevação das mortes por violência, especialmente entre jovens negros. Houve avanços, impasses e consolidação de certezas sobre efeitos de políticas públicas.

Entre as mortes por assassinato, a proporção de pretos e pardos sempre foi superior, e aumentou. Problemas de saúde se modificam ao longo do tempo, relacionam-se com alterações do mercado de trabalho, mudanças na distribuição de renda, ampliação (ou restrição) de direitos sociais e com a eficácia das políticas públicas. Assim, a periodização de padrões de morbidade e mortalidade não pode ser demarcada apenas por gestões governamentais. A variação de um indicador não é causa e efeito do uso da faixa de presidente da República. Haverá uma “tempestade sanitária perfeita” porque o aumento da pobreza é simultâneo ao congelamento do orçamento para o Ministério da Saúde (a Lei Orçamentária enviada para o Congresso aumenta apenas 0,84% dos recursos para 2019). A superposição da queda da renda com restrição do SUS tenderá a reverter a velocidade de aumento da esperança de vida.

Impedir retrocessos no direito à saúde requer vontade de debater, compreender, ficar surpreso, ouvir e testemunhar. É impossível formular políticas de saúde efetivas ou atender bem os pacientes sem reconhecer em todos o pertencimento comum à humanidade. Curiosidade é um ponto de partida para a empatia. Quando se perde o desejo de entender os outros, as vidas deixam de ter igual valor. O efeito halo — aproximação após generalização obtida a partir de uma só característica — é prejudicial à saúde: estimula equívocos, falsas polarizações e desconfianças em relação a quem não é da patota, mas tem experiência sobre o tema. Fazer uma avaliação positiva daqueles que compartilham convicções políticas semelhantes não significa permitir o transbordamento dessas vinculações para atividades de saúde.

Todos irão morrer, mas o pressuposto para ser simples e igual mortal é que raiva e medo não sejam emoções permanentes para quem atua na área. Um médico adepto de um determinado candidato ou partido político não precisa gostar da preferência eleitoral de doentes para salvar suas vidas. Políticos convencidos sobre a importância singular de cada vida terão mais disposição para encontrar alternativas que restrinjam desigualdades de nascer e morrer.

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