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sábado, 7 de novembro de 2009

O inconsciente ainda existe?

Psicanalistas perderam espaço para praticantes de outras terapias e Freud é alvo de críticos que consideram suas teorias ultrapassadas. Nos 70 anos de sua morte, o G Ideias debate a atualidade do fundador da psicanálise

Luciana Romagnolli e Pollianna Milan na Gazeta do Povo

Há 70 anos, em 23 de setembro de 1939, morria Sigmund Freud. O fundador da psicanálise não testemunhou a Segunda Guerra Mun­­dial e suas mortes em larga escala, não viu a emergência da cultura jovem, da revolução sexual, do consumismo, da globalização, nem os avanços científicos que culminaram nos antidepressivos. “O mundo mudou. O homem mu­­dou. A psicanálise teria que mudar para explicar o homem contemporâneo”, provoca o psicanalista Antonio Godino Cabas, citando o argumento que sustenta uma variedade de críticas recebidas por Freud hoje, com as quais não concorda.

Vivo, o gênio austríaco sofreu re­sistências para conseguir que suas ideias fossem aceitas. Teve uma vida marcada por lutas árduas contra diversas barreiras psicológicas e chegou a comentar em sua autobiografia de 1924 que, “durante mais de dez anos, não conseguiu ter adeptos”, lembra o psicólogo Sergio Sklar, professor da Universidade Estácio de Sá (RJ). Freud registrou ainda que, entre 1886 e 1891, abandonou quase por completo a investigação científica. No fim, resistiu a seus detratores.

Calado há sete décadas, é natural que o volume das críticas contra sua teoria só tenha aumentado, não apenas na medicina e na psicologia, mas em outras áreas que o seu pensamento alcançou, como a filosofia.

O médico austríaco que revolucionou o conhecimento do homem sobre si mesmo no início do século passado, descobrindo o inconsciente, teria então se tornado ultrapas­sado? Godino Cabas responde que não. Segundo ele, apenas as “re­­presentações sociais” do ho­­mem, ou o seu ideal sobre si mesmo, se alterou. Mas na sua “estrutura”, ou seja, em seu inconsciente, que é o que o determina como sujeito, o homem não mudou – defende o autor de O Sujeito na Psicanálise de Freud a Lacan.

Impopular

A psicanálise, por consequência, permanece atual. O que não desmente que os divãs perderam popularidade. “(Em 1900), Freud teve o privilégio de ser exclusivo em relação a esse modo muito singular de pensar o sujeito. Hoje, em termos de clínica, divide espaço com outras metodologias”, ressalta Rosa Ma­­riotto, psicanalista e professora da PUCPR.

Uma vertente que conquistou muito espaço nos consultórios foi a terapia cognitivo-comportamental. “Na minha condição de professora universitária, isso fica muito claro. Se, anos atrás, a psicanálise ocupava grande destaque no conteúdo programático de um curso de psicologia, hoje concorre com outras teorias”, diz Rosa.

Também na mídia, a visibilidade do pensamento psicanalítico diminuiu em comparação com as décadas de 70 e 80, por mais que chavões como “Freud explica” continuem no vocabulário popular. “O freudismo e a psicanálise deixaram de ser saberes midiáticos, aqueles que tomam a dianteira e são consultados a propósito de crises para explicar uma realidade que foge à compreensão cotidiana”, afirma Godino Cabas.

O afastamento do foco das atenções, contudo, é visto pelo psicanalista como algo positivo. “Todo o trabalho midiático do Eduardo Mascarenhas (que participava de programas televisivos como o TV Mulher, nos anos 80) e dos analistas que periodicamente apareciam na mídia é uma caricatura da psicanálise”, critica Cabas. A psicanálise não é, afinal, uma teoria que ambicione explicar condutas. Seu objetivo é levar o sujeito a reconhecer suas condutas e acolhê-las como “uma expressão de uma verdade interna desconhecida.”

Esse autoconhecimento exige tempo, enquanto a palavra de ordem contemporânea é a pressa. A busca pela satisfação imediata, que caracteriza o milênio, faz com que as pessoas deixem de refletir sobre si mesmas, e a falta de tempo para entender o “eu interior” diminui o interesse pela teoria freudiana.

“Nos Estados Unidos, Freud não tem tanta credibilidade por causa do modo de vida dos americanos, que precisam de soluções rápidas para as coisas. A teoria é esquecida facilmente nestes locais”, explica a psicanalista Sissi Vigil Castiel, diretora de ensino da Sigmund Freud Associação Psicanalítica, de Porto Alegre.

Ponto de partida

No Brasil e nos países latinos, como a França, Freud ainda é considerado pertinente. “Freud é central na minha prática”, afirma Cabas. “É um autor que conseguiu ver as doenças nervosas como poucos médicos as investigaram. Levou a paixão de investigador do laboratório científico para o consultório”, completa.

A atualidade da teoria freudiana não significa, contudo, que ela ainda seja seguida como no original. “Freud ainda é muito respeitado, mas ele tem que ser estudado como ponto de partida, como um pensador da sua época”, observa a psicanalista Edna Maria Romano Wallbach, presidente do Núcleo Psicanalítico de Curitiba.

Melanie Klein, Jacques Lacan, D.W. Winnicott e os demais seguidores dele não negaram seu pensamento, mas revisaram conceitos – uma prática que o próprio Freud mantinha enquanto vivo, à medida que fazia novas descobertas. “Freud foi um grande revisor de si mesmo. Essa constante transformação é fiel ao pensamento freudiano”, comenta Rosa.

Se a doutrina freudiana não dá conta sozinha de abarcar todas as variáveis da conduta humana, certamente foi a responsável por abrir caminho para a neurociência e outras descobertas futuras. “É claro que Freud não precisou pensar em questões que acontecem na sociedade de hoje, afinal, as famílias estão mudadas. Ele não tratava de psicóticos nem de crianças, por exemplo. Cuidava de histéricas”, observa Sissi.

Coube então a seus discípulos aprofundar os assuntos nos quais o psicanalista não se demorou mais.

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