Miguel Urbano Rodrigues no Brasil de Fato
Talvez nenhum outro Prêmio Nobel da Paz tenha suscitado tão ampla e justa polêmica a nível mundial como o atribuído a Barack Obama.
Admito que no futuro o discurso que ele pronunciou em Oslo, em 10 de dezembro, será recordado como o discurso da hipocrisia imperial.
Nove dias antes, o cidadão-presidente Obama decidira enviar para o Afeganistão mais 30.000 soldados, elevando para 100.000 os efetivos do exército norteamericano que invadiu aquele pais há 8 anos. Consciente de que o discurso da paz era na circunstância incompatível com o envolvimento atual dos EUA em múltiplas guerras de agressão, o novo Prêmio Nobel tentou justificá-las em nome de valores eternos da condição humana.
Apresentou o apocalipse afegão como uma "guerra necessária" travada em defesa da humanidade. Falou de "promessa de tragédia", reconhecendo, pesaroso, que, nas guerras, "uns matam, outros morrem". Omitiu que a tragédia desencadeada no coração da Ásia não é promessa, mas monstruosa realidade. E omitiu também que é a sua gente, cumprindo ordens criminosas, que mata e os "outros" que morrem
Não disse que no Afeganistão morreram, até fim de Novembro, somente 849 soldados americanos, os agressores, mas mais de 100.000 entre os agredidos, metade dos quais de fome.
Traçando uma fronteira entre as "guerras necessárias" e aquelas que não o são, Obama afirmou que "um movimento não violento não teria podido deter os exércitos de Hitler". Mas enunciou essa evidência para estabelecer um paralelo grotesco entre a Al Qaeda e o III Reich nazista. Identifica na invasão do Afeganistão uma exigência da defesa do povo dos EUA porque "os líderes da Al Qaeda (organização inexpressiva num pais onde o árabe é uma língua desconhecida do povo) não aceitam depor as armas".
Fica implícito que o Estado mais rico e poderoso do mundo considerou imprescindível à sua segurança que as Forças Armadas norteamericanas atravessassem um oceano e dois continentes para irem combater, num dos países mais atrasados e pobres do mundo, o líder de uma seita de fanáticos. Pela primeira vez na História um governo declarou guerra não um Estado, mas a um terrorista, guindando-o à condição de interlocutor. Com a peculiaridade de que, sendo desconhecido o seu paradeiro, o alvo e a vítima dessa guerra irracional foi e continua a ser o povo entre o qual, supostamente, se ocultaria Bin Laden.
No mesmo dia em que Obama recebia o Nobel da Paz na Noruega, o general Stanley McCrhystal fazia perante o Congresso dos EUA de gala, com o peito constelado de condecorações – as medalhas dos guerreiros agressores são tradicionalmente atribuídas em função da quantidade de massacres que cometeram pela "salvação da pátria"- o comandante supremo na área Afeganistão-Paquistão reafirmou a sua certeza na vitória de uma "guerra justa e necessária".
São complementares o seu discurso e o de Obama.
A violência na história
Enquanto Obama lutou pela Presidência e nos primeiros meses de Governo, o seu discurso, embora retórico, apresentou matizes humanistas.
Mesmo entre adversários ideológicos, perdurou durante algum tempo uma dúvida: seria o jovem presidente um estadista fiel a princípios e valores éticos e que somente não iria mais longe por ser travado pela engrenagem do sistema de poder?
O balanço da sua política em onze meses não lhe favorece a imagem. Não obstante o massacre midiático promovido para o erigir no "salvador" de que o capitalismo em crise estrutural necessitava, a ideia de que o Presidente dos EUA não concretizou compromissos assumidos porque o grande capital e o Pentágono o impediram é negada pela realidade da vida.
Por si só, a escalada no Afeganistão fez ruir o mito do eticismo do presidente. Sobra apenas a retórica.
O discurso de Oslo tripudia sobre a razão e a ética. Sob o manto do "poder moral", Obama, movendo-se num labirinto de hipocrisia e de contradições, pretende persuadir os povos de que o poder imperial dos EUA está a serviço da humanidade quando, dolorosamente, recorrem à violência para defender, segundo ele, a liberdade, a democracia, a civilização.
Marx captou a realidade ao afirmar que a violência tem funcionado como parteira da História.
Pouco mudou em milhares anos. No nosso tempo a humanidade nada num oceano de violência. Nos últimos 60 anos em guerras e outros flagelos, cuja responsabilidade no fundamental cabe ao imperialismo, morreram ou foram feridas 60 milhões de pessoas, quase tantas como na II Guerra Mundial.
Num livro maravilhoso [1], Georges Labica – um dos grandes filósofos do século XX e um dos raríssimos intelectuais contemporâneos que fez da cultura integrada o cimento de uma obra luminosa pela inteligência e saber – lembra-nos que o capitalismo é a pátria de um sistema que escraviza (e emancipa através da revolta) e que a globalização da violência reflete afinal o estado da sociedade modelada e oprimida pelas suas engrenagens.
As guerras "necessárias" não são, porém, as que os EUA travam na Ásia contra povos misérrimos cujas riquezas saqueiam.
Essas, as "justas", são inseparáveis do direito à sobrevivência de povos agredidos por outros, as que opõem a violência libertadora à violência opressora. Já dizia Maquiavel que "os levantamentos de um povo livre são raramente perniciosos à sua libertação".
A História apresenta-nos ao longo dos séculos exemplos expressivos, por vezes comovedores, de tais guerras, autênticas epopeias nacionais. A resistência armada é então nelas o desembocar da vontade coletiva.
Isso aconteceu no combate à barbárie do III Reich Alemão; na luta do Vietnam contra os EUA, na saga argelina, no batalhar multissecular pela independência dos povos da Ásia, da América Latina e da África contra o colonialismo e pelo direito a construírem o seu próprio futuro como sujeitos da História; acontece hoje na luta épica do povo palestino contra o sionismo neonazista, na resistência dos povos do Iraque e do Afeganistão à ocupação imperial norteamericana.
O discurso farisaico de Obama em Oslo, aclamado pelos sacerdotes do sistema opressor, seus cúmplices, configurou uma ofensa à inteligência e dignidade dos povos agredidos, explorados e humilhados pelo imperialismo.
[1] Georges Labica, " Théorie de la Violence", Ed.La Cita del Sole, Napoles, e Librairie Philosophique J.Vrin, Paris, Dezembro de 2007.
Miguel Urbano Rodrigues é jornalista e escritor português.
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