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terça-feira, 10 de maio de 2011

Sobre ética, autodeterminação e tabagismo

recebi do meu amigo Paulo Proto


No fim de semana passado, a Revista Veja publicou, em suas páginas amarelas, uma reportagem com o filósofo Denis Rozenfeld na qual ele, mais uma vez, esbraveja contra o Estado-babá, lançando pérolas como "Ha dezenas de resoluções da ANVISA do tipo faça isso, não faça aquilo." "O orgao se autoconsagrou o grande tutor do brasileiro, aquele que sabe tudo e ao qual devemos obediência cega." "A tentativa de proibir a publicidade de cigarro, de bebida e de alimentos parece inofensiva, mas, sem publicidade, a imprensa se torna dependente do governo, o que compromete a liberdade de expressão".

Em anexo, resposta do Dr. Sérgio Boeira, da USC.

Achei que lhes interessaria.







ENVIO A VOCÊS A MENSAGEM QUE ENVIEI AO DENIS ROSENFIELD, DEPOIS DE LER AS PÁGINAS AMARELAS DE VEJA[1].


Denis Rosenfield
O que você diz à revista Veja merece no mínimo correções. Você parece desconhecer quase tudo a respeito de tabagismo e do comportamento das empresas de tabaco. Sua defesa do chamado livre-arbítrio é de uma ingenuidade tecnocientífica e histórica extraordinárias.
Você parece defender um Estado completamente irresponsável, assim como uma liberdade de mercado que jamais existiu na história da humanidade. O seu idealismo liberal já está ultrapassado há mais de 100 anos, pois nas últimas décadas do século XIX acabou o sonho de uma "concorrência perfeita", aquela em que a “mão invisível do mercado” corrigia as possíveis injustiças sociais. As grandes empresas, afinal, passaram a determinar os preços e iniciar processos de monopólio. Veja, a respeito disso, os argumentos do liberal Richard Bellamy, na obra Liberalismo e Sociedade Moderna (UNESP, 1994). Nem mesmo os mais ingênuos liberais defendem a concepção a-histórica de livre-arbítrio que você defende, especialmente em se tratando de tabagismo.
Sei do que estou falando, pois escrevi uma tese de doutorado sobre as estratégias da indústria de tabaco, etc. Você certamente desconhece os documentos "secretos" da indústria, que vieram a público nos Estados Unidos em processos judiciais e foram objeto de análises desde 1996. Por isso tenho certeza de que suas fontes são superficiais quando você considera o ato de fumar como um ato de consumo qualquer. 
Observe o seguinte dado histórico, que tiro de minha tese aprovada no ano 2000 (UFSC): em 1881, James Bonsack anunciou sua invenção -- uma máquina de confeccionar cigarros. Era o que as empresas precisavam para popularizar o consumo. A família Duke decide aperfeiçoar a máquina inventada e, em 1884, o modelo aperfeiçoado já produzia 200 cigarros por minuto ou 46,8 milhões ao ano. Antes do invento, as carteiras de cigarros são vendidas por 10 centavos de dólar, cada uma com dez unidades. Depois, o preço cai para cinco centavos. De 1885 a 1886, a família Duke (principal fabricante da época, dona da American Tobacco Company - ATC) aumenta sua produção de 9 para 30 milhões de cigarros. 
Percebe-se com estes números a importância decisiva da industrialização no aumento do consumo. 
Para falar em "livre-arbítrio", seria preciso ignorar essa história, ignorar os condicionamentos técnicos, mercadológicos, sociais e culturais do consumo. 
Além disso, ainda que cada pessoa decida "livremente" colocar o primeiro cigarro na boca, não estará livre para determinar o fim do consumo. Nisso consiste o conceito de tabagismo: é uma doença que se instala contra a vontade do consumidor, induzida pela tecnociência da indústria e pelas características naturais das folhas de fumo, especialmente as da nicotina. Ignorar isso é desconhecer um dado elementar da ciência. Aliás, o cigarro é um dos produtos mais pesquisados no mundo, e muitas pesquisas são feitas com dinheiro público. O que você acha que deve ser feito com tais pesquisas? Ignorá-las, em nome do livre-arbítrio a-histórico?
Denis, duvido que você defenda os direitos individuais e a pessoa humana mais do que eu. O que estou escrevendo não é fruto de crença partidária nem é defesa de algum órgão estatal.
Aliás, eu também acho que você desconhece o Código de Defesa do Consumidor, o que não é algo adequado para quem defende o livre-arbítrio. O Código do Consumidor é solemente descumprido pelas empresas que você está defendendo. O Estado que você critica também defende as empresas de tabaco, ao colocar o Ministério da Saúde a fazer as tais "advertências", desobrigando as empresas de cumprir a lei.
A empresa de tabaco nem informa quem é o "químico responsável" por seus produtos, nem informa quais são os efeitos colaterais do consumo de seus produtos. Isso porque o Estado historicamente protege as empresas e, com as "advertências" do Ministério da Saúde, alimenta o “mito do fruto proibido”. E com isso faz o que as empresas querem, para atrair os consumidores adolescentes...
Esse arranjo político para descumprir o Código do Consumidor foi uma conquista das empresas, que têm muita força na medida em que pagam muitos impostos. 
E quanto ao artigo 278, do Código Penal, você já o leu? Não, certamente não. Os dirigentes das empresas deveriam ir para a cadeia, mas quem é que fala nisso? 
No meio de tanta politicagem, falar filosoficamente em "livre-arbítrio" é mera especulação. 
Você possivelmente está recebendo alguns trocados das empresas de tabaco para dizer o que diz. Não seria uma exceção, já que pagar intelectuais para defender seus pontos de vista é algo corriqueiro na história destas empresas.
 
 
Sérgio Luís Boeira
Prof. Dr. Ciências Humanas (UFSC, 2000)
Depto. Ciências da Administração (CAD)
Curso de Pós-Graduação em Administração (CPGA)
Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC)


[1] O Estado não pode tudo. Veja, 06/05/11.

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