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domingo, 4 de novembro de 2012

Custos e disputas políticas emperram acesso à saúde nos EUA


Mesmo com a medicina mais avançada do mundo, país tem 48 milhões de cidadãos sem nenhum tipo de cobertura médica.

Por Assis Ribeiro
Altos custos e milhões de pessoas fora do sistema são a combinação cruel que dificulta o acesso à saúde nos Estados Unidos.
Uma realidade que o técnico em televisão Jeff Kehoe, de Austin, no Texas, conhece bem.
Há seis anos sem trabalho fixo que lhe pague um plano de saúde, Kehoe não tem renda suficiente para arcar com os US$ 500 mensais de um seguro privado.
Asmático, ele diz que já perdeu as contas de quantas vezes teve de ficar em casa pela falta de uma simples bombinha para controlar a falta de ar.
"Eu costumava ficar de olho nas pessoas que usam bombinhas. Chegava para elas e perguntava, vem cá, você não vende essa bombinha?", contou Kehoe à BBC Brasil.
"Muitas dias eu simplesmente não saía de casa. Se fosse um dia com mais poluição, ou maior umidade, tinha de me conformar que não ia conseguir fazer muita coisa.”
Paradoxo
O paradoxo da saúde americana é que os recursos mais avançados do mundo estão presentes no país, mas mais de 48 milhões de pessoas não têm nem plano de saúde, nem direito à cobertura paga pelo Estado.
Para servir os cerca de 165 milhões de clientes que têm seguro via empregador ou privado, médicos são incentivados a buscar especialização, e hospitais, a investir equipamentos e tratamentos e caros.
"Temos um sistema que produziu mais especialistas do que médicos de família. E nós precisamos de mais medicina geral no nosso país", diz a especialista em saúde Regina Rogoff.
A recompensa aos provedores não com base na qualidade do atendimento, mas por número de visitas e procedimentos – mesmo, por exemplo, um hospital que recebe para tratar um paciente que pegou uma infecção naquele mesmo ambiente hospitalar – contribui para a inflação dos preços dos serviços.
Essa realidade faz com que os Estados Unidos tenham o maior gasto médico anual do mundo – US$ 7,290 por pessoa, segundo um estudo da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) –, mas a menor expectativa de vida entre os países desenvolvidos.
"Os incentivos estão desalinhados", avalia Rogoff. "Se houvesse incentivos para os hospitais receberem para manter os pacientes fora deles, o resultado seria diferente."
Acesso
A especialista dirige a Clínica Popular – People’s Clinic –, em Austin, uma organização que provê serviços de atendimento primário por quantias módicas que começam a partir de US$ 25.
O valor do serviço é determinado pela capacidade de pagamento dos pacientes – alguns, poucos, não pagam nada.
Especialistas dizem que se todos os americanos tivessem acesso a este cuidado básico, menos gente procuraria tratamento nas salas de emergência – um problema sério, já que os pacientes chegam em estado crônico às salas de emergência e ainda pagam prêmios de atendimento pelo tratamento.
Reduzir os custos do sistema foi um dos objetivos da reforma da saúde do presidente Barack Obama, que obriga todos os americanos a fazer parte do sistema, como forma de redistribuir esses custos.
A lei já aumentou a cobertura da rede – dois anos atrás, o número de pessoas não seguradas nos EUA era de 50 milhões –, obrigando os seguros privados a manter os jovens até 26 anos de idade como dependentes nos planos dos pais.
No entanto, a Suprema Corte derrubou uma parte crucial da legislação que obrigava os Estados a ampliar o programa de saúde para as famílias de baixa renda, Medicaid, custeado por recursos estaduais e da União.
O Congresso estimou que 17 milhões de americanos seriam beneficiados por uma expansão do Medicaid a partir de 2014. Mas governadores republicanos em Estados como o Texas, Flórida, Carolina do Sul, Louisiana e Iowa já disseram que não pretendem expandir o programa.
"Se expandirmos o Medicaid, vamos reduzir apenas pela metade o número de pessoas não seguradas no Estado. A outra metade ficaria descoberta", disse à BBC Brasil a porta-voz da Secretaria da Saúde do Texas, Stephane Goodman.
Um quarto da população texana – mais de 6 milhões de pessoas – não tem nenhum tipo de seguro-saúde. E os programas sociais no Estado são tão restritivos que mesmo um outro quarto, que é atendido pela rede pública, é considerado mal-servido na saúde.
"É uma faca de dois gumes para Estados com grande população carente. A saúde responde por um quarto do nosso orçamento. Mesmo essa cobertura limitada consome grande parte dos nossos recursos, e os gastos crescem mais rápido que em outras áreas do orçamento", diz Goodman.
Disputa política
A reforma da saúde foi aprovada em meio a um amargo clima de desavença política em 2010. Os nervos continuaram à flor da pele até meados deste ano, quando o Supremo considerou a reforma constitucional, fazendo ressalva apenas à obrigatoriedade da expansão do Medicaid.
Se for reeleito, Obama terá de enfrentar mais dois anos de disputas políticas com os Estados, até que todas as partes da lei entrem em vigor, a partir de 2014. O presidente gastou grande parte do seu capital político aprovando a reforma no início do seu mandato, e por essa razão é acusado de “comunista” pela direita americana.
Já o seu rival republicano, Mitt Romney, já disse que se levar a Casa Branca vai "repelir e substituir" a reforma de saúde – apelidada pejorativamente de "Obamacare" –, mesmo tendo sido ele o governador de Massachussetts que assinou uma lei da saúde bastante semelhante em 2006 (apelidada da “Romneycare”).
Enquanto a política é travada nos altos escalões de Washington e dos palácios de governo estaduais, milhões de americanos continuam vivendo sob a incerteza do acesso à saúde.
"Sabe, o livre mercado é maravilhoso, funcionou para nós em muitas coisas. Mas na saúde, o custo explodiu e ficou longe do alcance da nossa população", lamenta Jeff.
"Começamos a ver mais, na nossa sociedade, gente que carrega sequelas e que aprendeu que simplesmente têm de conviver com elas. Em algum momento, a pessoa tem de decidir que vai viver com sequela e pronto."

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