TRANSPARÊNCIA Lopes no consultório onde não entram propagandistas. "Os médicos não deveriam aceitar presentes de nenhum tipo", diz. |
O brinde não é de graça
Por que alguns médicos estão evitando os propagandistas de laboratório
(dica da Marcela Dohms)
VERSÃO DA MATÉRIA AMPLIADA
Ninguém gosta de perder tempo na sala de espera do médico. Pior ainda se o horário da consulta coincidir com a visita de um propagandista de laboratório. Quando o paciente já folheou todas as revistas amarfanhadas e está quase sendo chamado, surge o fura-fila. Com uma mala de caixeiro-viajante e um sorriso forçado, o moço avança em direção ao consultório e se tranca com o doutor. Passa para trás algumas pessoas incomodadas, outras irritadas, a maioria resignada. Para muita gente, o propagandista é o chato-inofensivo - apenas um sujeito que tenta vender seu peixe e ganhar a vida honestamente. Ele é muito mais do que isso.
Nos últimos meses, vem ganhando força no mundo todo um movimento que defende a transparência nas relações entre os médicos e a indústria farmacêutica. Para esse grupo, o propagandista é uma peça-chave numa engrenagem muito mais complexa. Convencer os médicos a receitar determinadas marcas é uma das únicas formas de aumentar as vendas e vencer a concorrência. Principalmente em países como o Brasil, nos quais a legislação não permite que as empresas façam propaganda diretamente ao consumidor de remédios vendidos com prescrição médica.
O responsável por esse convencimento, na maior parte dos casos, é o representante da indústria. Ele usa métodos explícitos - amostras grátis, folhetos explicativos, brindes baratos como canetas e termômetros - e outros nem sempre confessáveis - convites para viagens para o médico e a esposa, equipamentos para o consultório etc. A bajulação aos médicos até poderia ser considerada uma prática aceitável, inerente a uma atividade comercial como tantas outras, se a sociedade soubesse o quanto paga por isso e de que forma ela pode fazer mal à saúde.
Transparência total é a proposta de dois senadores americanos: o republicano Charles Grassley e o democrata Herb Kohl. Em setembro, eles apresentaram um projeto de lei que pretende obrigar as companhias farmacêuticas e os fabricantes de equipamentos médicos a revelar quanto gastam com propaganda para os médicos. Seja na forma de jantares, viagens para resorts, cursos, consultorias ou qualquer outra. Não por acaso, o projeto recebeu o nome de Physician Payments Sunshine Act (algo como projeto para lançar luzes sobre os pagamentos recebidos pelos médicos). "O objetivo é colocar um raio de sol sobre uma situação que contribui para os exorbitantes custos da saúde", diz outro senador, Charles Schumer (democrata).
Toda vez que o médico recebe um presente da indústria, quem paga a conta é o paciente. Gastos com esse tipo de promoção tornam os remédios pelo menos 20% mais caros, segundo estimativa da professora Marcia Angell, da Harvard Medical School, e autora do livro A verdade sobre os laboratórios farmacêuticos. "A população tem apoiado medidas de transparência porque está mais atenta à quantidade de médicos pagos pela indústria", diz. Apesar disso, ela não acredita que o apoio da opinião pública garanta a aprovação da lei. "A influência do lobby farmacêutico em Washington é enorme e os médicos também não vão apoiar esse projeto", afirma.
Dois estados americanos - Minnesota, em 1993 e Vermont, em 2003 - criaram leis desse tipo. Nos últimos meses, três outros (Maine, West Virginia e Califórnia) e o distrito de Columbia seguiram o mesmo caminho. Outros estados discutem se devem adotar a medida. Até o momento, não parece que leis tenham sido capazes de tornar mais ético o relacionamento entre a indústria e os médicos. Um estudo publicado em abril no The New England Journal of Medicinerevela que 94% dos 3,1 mil médicos americanos entrevistados têm algum tipo de relação com a indústria farmacêutica. Do total, 83% aceitam comida e bebida no local de trabalho; 73% recebem amostras grátis de remédios; 35% têm custos com educação ou reuniões médicas pagos pelos laboratórios.
O autor do estudo, Eric G. Campbell, do Massachusetts General Hospital, voltou a comentar o assunto há duas semanas no mesmo periódico. "Embora muitos médicos neguem que receber presentes influencie as prescrições, as pesquisas mostram que essa correlação existe", escreveu Campbell. "Se não existisse, por que as empresas gastariam US$ 19 bilhões por ano para estabelecer e manter relações com os médicos?"
Nesse terreno, a indústria é muito competente. Monitora preferências, hábitos, desejos. Um propagandista descobriu que Antonio Carlos Lopes, professor de clínica médica da Universidade Federal de São Paulo, era corinthiano. E ofereceu ingressos para uma partida importante, com direito a tribuna de honra e comes-e-bebes. "Fiquei sem graça e peguei os ingressos. Mas resolvi não usá-los nem repassá-los a ninguém", diz.Em outra ocasião, um propagandista chegou ao consultório dizendo: "O sr. não está receitando o meu remédio". As empresas sabem quais drogas são prescritas por determinados médicos porque algumas farmácias dispõem de softwares que registram o CRM do profissional e o nome do remédio na boca do caixa. A informação preciosa chega às empresas e os propagandistas acertam a mira.
Lopes diz que deixou de receber propagandistas no consultório. Permite a entrada deles apenas na faculdade porque acredita que eles cumprem um papel importante que é manter os professores atualizados sobre novos tratamentos. Assim como Lopes, outros médicos estão dizendo "não" aos promotores. Nos Estados Unidos, muitos pertencem à organização No Free Lunch (Não existe almoço grátis), que pede aos médicos que não abram as portas aos propagandistas. Fundada em 1999, a entidade tem apenas 800 membros (entre 800 mil médicos no país). É pouca gente mas há outras iniciativas do gênero. No mês passado, a Universidade de Boston proibiu a distribuição de presentes e comida pelos propagandistas.
Isso não significa que todo relacionamento entre a indústria e os médicos seja nocivo aos pacientes. Se esse vínculo não existisse, praticamente nenhum dos remédios disponíveis atualmente estaria no mercado. A pesquisa de novas drogas só é possível porque os médicos e a indústria trabalham juntos para incluir pacientes em estudos clínicos. Desde que esses estudos sejam realizados de acordo com normas éticas e o vínculo dos pesquisadores com a indústria seja revelado eles são muito bem-vindos. Da mesma forma, não há nada demais no fato do médico receber a visita de um propagandista. O que importa é como ela se desenrola e quais são os efeitos dela.
Gabriel Tannus, um executivo da indústria que começou a carreira como propagandista e hoje preside a Associação da Indústria Farmacêutica de Pesquisa (Interfarma), diz que as empresas estão preocupadas em estabelecer normas de conduta na promoção de medicamentos junto aos médicos. "A criatividade do pessoal de marketing é infinita e isso acabou se voltando contra a própria indústria", diz. "Pelo código de conduta da Interfarma, não é permitido pagar viagens de primeira classe nem distribuir presentes caros, como sacos de golfe, por exemplo", diz.
Segundo Tannus, supor que um médico vá receitar um remédio no qual não confia só porque recebeu um brinde de laboratório é subestimar a inteligência do profissional. O presente - ou a simpatia por determinado propagandista -- pode não produzir esse efeito. Mas pode ser decisivo quando o médico precisa escolher entre dois remédios semelhantes. Sob o impacto - consciente ou inconsciente -- da propaganda, ele corre o risco de receitar o medicamento mais moderno mesmo sabendo que um concorrente também daria conta do recado. Pode se arrepender mais tarde, quando se descobrir que a droga mais moderna não era exatamente mais eficiente nem mais segura.
Fontes: Eric G. Campbell, do Massachussetts General Hospital e Marcia Angelli, da Harvard Medical school |
Fotos: Pisco Dei Gaiso/ Época |
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