Ética na saúde
no Globo
Em medida inédita entre farmacêuticas, a GlaxoSmithKline (GSK) anunciou ontem que não mais pagará médicos para que promovam seus produtos em palestras e conferências. A decisão já está valendo nos EUA e será estendida para outros países, inclusive o Brasil, entre 2014 e 2016. A medida ecoa as críticas sobre a prática de laboratórios farmacêuticos, bastante questionada por sociedades médicas e de bioética no mundo, e já combatida em países europeus e nos EUA.
O anúncio foi feito em meio ao escândalo de subornos que veio à tona este ano na China. A GSK foi acusada pela polícia de pagar o equivalente a US$ 494 milhões, para que agências de viagens facilitassem o aliciamento de profissionais de saúde. As vendas da empresa no país despencaram 61% no terceiro trimestre de 2013.
Em entrevista ao "New York Times" o CEO da GSK, Andrew Witty, afirmou que a revisão da prática não tinha a ver com o escândalo, mas que se tratava de um esforço "para tentar e ter certeza de que a empresa estava em sintonia com a forma como o mundo está mudando" Entretanto, a empresa está se antecipando a uma exigência da nova lei de saúde do governo americano. A partir de 2014, todas as farmacêuticas que atuarem no país terão que tornar públicos seus pagamentos.
- A sociedade médica nos Estados Unidos já proíbe a prática, e por isso a indústria está tendo que se enquadrar em novos padrões - ressalta o coordenador do Programa de Pós-Graduação em Bioética da Universidade de Brasília e do Comitê Internacional de Bioética da Unesco, Volnei Garrafa. - Aqui no Brasil isso continua com muita força e se chama conflito de interesse.
Pagamento de viagens para congressos com hospedagens em hotéis de luxo, eventos para lançamentos de drogas com o objetivo de agradar médicos e práticas nada transparentes para influenciar os profissionais de saúde a aumentar a prescrição de algumas drogas em detrimento de outras são comuns. O costume, no entanto, não para por aí.
- Algumas sociedades médicas já se posicionaram contra a troca de benefícios com a indústria farmacêutica, mas a maior parte delas faz seus congressos com recursos das farmacêuticas - afirma o diretor do Instituto do Coração da UFRJ, Nelson Souza e Silva. - Embora as sociedades sejam privadas, elas não podem fazer propaganda de remédio.
Uma das maiores farmacêuticas do mundo, a GSK também anunciou que irá remover as metas individuais para representantes que trabalham diretamente com profissionais de saúde. Em comunicado, a empresa afirmou que eles agora serão avaliados por seu conhecimento técnico.
- A indústria farmacêutica usa isso como marketing. Se não influenciasse as pessoas, ninguém pagaria para fazer propaganda - diz Souza e Silva. - As empresas te tratam bem e isso te influencia. Por isso eu defendo que os médicos não podem receber nada das indústrias, nem uma canetinha. No fim das contas, quem vende o remédio somos nós, médicos. Temos que ter liberdade para prescrever o que é melhor para o paciente, sem influências externas.
Pesquisas compradas
A questão fica ainda mais complicada quando se trata das pesquisas. A farmacêutica britânica anunciou que continuará pagando para que médicos façam investigações clínicas patrocinadas, além de atividades de consultoria e pesquisa de mercado, classificando a prática como essencial para sua atividade. No entanto, ela é alvo de críticas acirradas de especialistas em bioética.
- Na verdade, não só a GSK, mas as indústrias farmacêuticas em geral financiam a realização de pesquisas e esse financiamento gera sempre o conflito entre os interesses do médico, da indústria e do paciente - aponta o coordenador do Programa de Pós-Graduação em Bioética, Ética Aplicada e Saúde Coletiva de Fiocruz, UFRJ, Uerj e UFF e presidente da Sociedade de Bioética do Rio, Sérgio Rego.
- Isso pode fazer com que as decisões tomadas não sejam as melhores para o paciente. O grande problema é que eles pagam valores muito altos.
A relação entre indústria e pesquisadores foi abordada no documentário australiano "Food Matters" (O alimento é importante, na tradução para o português), de 2008. Defendendo o poder da alimentação contra o uso abusivo de medicamentos, o filme mostra como as grandes farmacêuticas influenciam o resultado dos estudos e a sua divulgação.
- A indústria elabora os métodos de pesquisa e os médicos ficam subordinados a quem paga - critica Souza e Silva. - Isso deveria ser feito institucionalmente por universidades públicas. O ideal é que as universidades criassem um fundo de financiamento, para o qual as indústrias pudessem contribuir. Mas a pesquisa teria que ser dirigida e comprovada pela instituição.
Rego corrobora a opinião de Souza e Silva e afirma, ainda, que o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) poderia atuar na regulação e controle das pesquisas, com alocamento de verbas e elaboração de editais. De acordo com os médicos, isso poderia evitar que resultados fossem distorcidos.
- Quando a própria indústria analisa os resultados, elas escolhem quais vão publicar. Fazem com que a pesquisa saia em revistas durante congressos médicos e perdemos a medida do que é real - afirma Souza e Silva. - Se o risco de ter problemas decorrentes do colesterol alto for de duas pessoas em 100, e o remédio testado conseguir baixar para uma pessoa em 100, eles falam que o risco baixou em 50%. Isso é o marketing, eu posso fazer, mas um médico deveria ter a conduta ética de não assinar um resultado como esse. Pois o medicamento não terá efeito.
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