É tudo verdade, mas a notícia soa como uma daquelas tiradas da verve nacionalista brasileira: Armínio Fraga cogitado para comandar o Fed norte-americano.
Saul Leblon na Carta Maior
A notícia soa como uma daquelas tiradas espirituosas da verve nacionalista brasileira: ‘Armínio Fraga cogitado para comandar o Fed norte-americano’.
Parece um revival do bordão dos anos 60, ‘Abaixo os intermediários, Lincoln Gordon para a presidência’, com cenário invertido.
Gordon, embaixador gringo, um dos articuladores do golpe de 64, não chegou a tanto.
Mas a cogitação de Armínio , ex-presidente do BC, de Fernando Henrique Cardoso --e atual fiador de Aécio Neves junto aos mercados-- é mais que uma metáfora venenosa.
A proposta, real, foi revelada agora pelo próprio autor, Timothy Geithner, ex-secretário do Tesouro dos EUA, que conta o episódio em seu livro, recém lançado, ‘Stress Test’.
‘Tim’ é um entusiasta dos derivativos e funcionou como uma espécie de Lincoln Gordon da alta finança junto à Casa Branca, durante a explosão da ordem neoliberal, em 2008.
Sua prioridade era salvar bancos.
Amigo de Armínio, ele levou a indicação do brasileiro a Obama cercando-o de elogios pela atuação no governo do PSDB, sem esquecer de mencionar sua cidadania americana.
A intercambialidade de Gordons e Armínios não é novidade na história brasileira.
Mas nem por isso a influência desses coringas deixa de trazer problemas no trato de interesses e agendas nem sempre tão complementares quanto eles.
Tome-se a encruzilhada do país nos dias que correm.
Dois de seus principais desafios consistem em elevar a taxa de investimento e reverter o estiolamento da base industrial.
Armínio e Aécio Neves deram uma entrevista ao jornal Valor, no início de maio. Nela, o coordenador econômico da candidatura tucana alinha críticas à ação oficial nessa área.
Entre outras coisas, o amigo de Geithner manifesta sua desaprovação ao Programa de Sustentação do Investimento (PSI). Talvez a coisa mais certa que o governo fez nessa frente.
Criado na crise de 2009, o programa garante crédito barato de longo prazo à aquisição de bens de capital, desde que apresentem 60% de conteúdo nacional.
O mesmo critério incômodo foi incorporado ao regime de partilha, que rege a exploração soberana do pré-sal brasileiro.
Todas as encomendas associadas à exploração das reservas bilionárias devem incluir 60% de conteúdo fabricado no país.
Compreende-se a má vontade.
Nos idos tucanos, quando Armínio pontificava, dizia-se que a melhor política industrial para uma nação em desenvolvimento é não ter política industrial alguma.
Com Armínio no comando (aqui, no Brasil) voltaríamos aos domínios dessa fé inquebrantável na capacidade dos livres mercados para alocar recursos com maior eficiência, ao menor custo.
O veículo por excelência dessa ubiquidade é o capital financeiro, dotado de alguns requisitos.
A saber: liberdade irrestrita, um Banco Central complacente e condições adequadas para impor sua remuneração pelos serviços prestados.
Se alguém disser que nessa chocadeira vingou o ovo do colapso neoliberal de 2008 não estará longe de uma verdade sintética acerca do ocorrido.
O amigão de Armínio ajudou na choca.
Quando presidente do Fed regional, de Nova Iorque, Geithner defendia que os bancos podiam reduzir suas reservas de segurança e alavancar operações, mesmo sem ter caixa para honrá-las, se necessário.
Deu-se o que se sabe. E agora se sabe que quando se deu, Geithner lembrou-se de Armínio.
Hoje, no Brasil, essa linha de pensamento nomeia o arrocho fiscal, de consequências sabidas, como a principal alavanca corretiva para destravar o crescimento da economia.
Trata-se de recuar o Estado para o mercado agir e a sociedade prosperar. É o que dizem.
Nunca é demais repetir que essa reordenação vigora há alguns anos em países europeus, sob ajuste da troika.
Neles se colhe uma taxa de desemprego média de 15% a 20%; as contas públicas se distanciam do equilíbrio; o crédito mingua, a atividade econômica rasteja e a juventude migra. Mas a extrema direita floresce: sua bandeira é substituir a desordem resultante por uma ordem policial atuante.
Em nenhuma outra dimensão da luta política nesse momento a pauta do país é tão esfericamente blindada e impermeável quanto na área econômica.
O governo e o PT tem sua quota parte no monólogo, que a mídia cuida de manter sob rédeas curtas.
O mantra do desequilíbrio fiscal é um exemplo.
Discute-se como se não existisse a opção de reduzir os juros na construção de um equilíbrio que poupe o investimento público em programas sociais e em infraestrutura.
Outro: o bordão do déficit em contas correntes –um desequilíbrio real, grave.
Tudo se passa como se o recurso do controle de capitais não figurasse no cardápio econômico mundial, embora seja tolerado até pelo FMI.
A invisibilidade imposta a essas angulações é parte da encruzilhada brasileira.
Ao afunilar o horizonte do país num labirinto repetitivo, desemboca-se, invariavelmente, no paredão do arrocho, inerente às diretrizes de Armínios e assemelhados.
No ano passado o Brasil teve um déficit de US$ 81,3 bi nas contas externas.
As remessas de lucros do capital estrangeiro somaram cerca de US$ 33 bi.
Remete-se a rodo.
A indústria automobilística puxa a fila. Mesmo tendo sido beneficiada por desonerações fiscais polpudas durante toda a crise, nunca lhe foi cobrado reverter remessas em investimentos e empregos.
‘Desde o governo Fernando Henrique Cardoso, o capital estrangeiro não paga imposto sobre as remessas de lucros ao exterior’, lembrou Maria da Conceição Tavares, em recente entrevista ao ‘Brasil Econômico’.
Sem imposto as múltis fazem a conta de chegar que lhes convier.
Ou seja, arbitram o volume do lucro conforme o valor da remessa pretendida (pode-se remeter 11% do lucro).
Boa parte dos dilemas vividos pela economia brasileira neste momento decorre das implicações da confortável mobilidade desfrutada pelos capitais produtivos e ‘visitantes’.
A desregulação internaliza instabilidades e ao mesmo tempo engessa a ação do Estado.
Cria-se um circulo vicioso: um desequilíbrio alimentado em parte pelas remessas, exige atrair capitais voláteis para fechar as contas externas.
Juros siderais são acionados para manter o fluxo constante de dólares.
A mecânica valoriza a moeda brasileira, barateia a importação, mata a industrialização e restringe o fôlego fiscal (pela exigência do superávit).
É impossível desmontar essa ciranda sem afetar os interesses da alta finança.
Razão pela qual respeitados economistas com acesso à Presidenta defendam alguma forma de controle de capitais numa reordenação macroeconômica.
Se o PT avançará nessa direção num segundo governo Dilma é incerto e depende em grande parte da correlação de forças interna e externa.
Agora, imaginar que um potencial presidente do Fed americano possa agir contra seus camaradas de fé, em defesa do país, equivale a aceitar que Lincoln Gordon operou o golpe por amor à democracia.
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